.

.
O CXSAJBA AGRADECE A TODOS OS COLABORADORES, PELAS FOTOGRAFIAS E GRAVURAS, QUE SÃO 160. PROF. FÁBIO MOTTA (ÁRBITRO DE XADREZ).

RESPEITE AS CRIANÇAS!

RESPEITE AS CRIANÇAS!
CRIANÇAS NÃO SÃO LIXO.




NÚMEROS DO ACERVO DESTE BLOG:

NÚMERO DE FOTOS E IMAGENS: 180.



NESTE PORTAL: MEMÓRIAS DO MUNICÍPIO SANT0 ANTÔNIO DE JESUS.

NESTE PORTAL CONSTAM AS MEMÓRIAS DO MUNICÍPIO SANTO ANTÔNIO DE JESUS, BAHIA: ARTES; BIOGRAFIAS; COLABORADORES; DESPORTOS; ECONOMIA; EDUCAÇÃO; HISTÓRIA; IMPRENSA ESCRITA E FALADA; POLÍTICA; RELIGIÃO; SERVIÇOS; TOPONÍMIA; TURISMO; URBANISMO E OUTROS. PROF. FÁBIO MOTTA (ÁRBITRO DE XADREZ).







Seja-bem vindo ao Portal! Sua visita é de número:

quinta-feira, 20 de junho de 2013

74.Micareta de Santo Antonio de Jesus - Mestrado de História.

Pesquisado e Postado, pelo Prof. Fábio Motta (Árbitro de Xadrez).

Referencia:
http://www.mestradohistoria.com.br/imagens_sys/Maite.pdf

---------------------------------------------------------------------------


ENTRE CORDÕES E BATUCADAS: FESTAS DE MOMO,
URBANIZAÇÃO E IDÉIAS DE MODERNIDADE EM SANTO ANTÔNIO
DE JESUS (1930-1950)
MAITÊ DOS SANTOS RANGEL
SANTO ANTÔNIO DE JESUS
ABRIL / 2010 1
MAITÊ DOS SANTOS RANGEL
ENTRE CORDÕES E BATUCADAS: FESTAS DE MOMO,
URBANIZAÇÃO E IDÉIAS DE MODERNIDADE EM SANTO ANTÔNIO
DE JESUS (1930-1950)
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-graduação em História Regional
e Local da Universidade do Estado da
Bahia (UNEB), como parte dos
requisitos necessários à obtenção do
título de Mestre.
 Orientador: Profº. Drº. Raphael Rodrigues Vieira Filho
ABRIL / 2010 2
R163 Rangel, Maitê dos Santos.
Entre Cordões e Batucadas: festas de Momo, urbanização e idéias
de modernidade em Santo Antônio de Jesus (1930-1950). / Maitê dos
Santos Rangel - 2010.
 117 f.: il
 Orientador: Prof. Dr. Raphael Rodrigues Vieira Filho.
 Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado da Bahia, Programa
de pós-graduação em História Regional e Local, 2010.
 1. Carnaval. 2.Festas Folclóricas. I. Vieira Filho, Raphael Rodrigues.
II. Universidade do Estado da Bahia, Programa de Pós-graduação em
História Regional e Local.
 CDD: 394.25
Elaboração: Biblioteca Campus V/ UNEB
Bibliotecária: Juliana Braga – CRB-5/1396.3
ENTRE CORDÕES E BATUCADAS: FESTAS DE MOMO,
URBANIZAÇÃO E IDÉIAS DE MODERNIDADE EM SANTO ANTÔNIO
DE JESUS (1930-1950)
MAITÊ DOS SANTOS RANGEL
Orientador: DRº. RAPHAEL RODRIGUES VIEIRA FILHO
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em
História Regional e Local, da Universidade do Estado da Bahia - UNEB,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre.
Aprovada por:
BANCA EXAMINADORA:
_______________________________________________
 Profº. Drº. Raphael Rodrigues Vieira Filho (Orientador)
_______________________________________________
Prof. Dr. (a)
________________________________________________
Prof. Dr. (a)
________________________________________________
Prof. Dr. (a) Suplente
________________________________________________
Prof. Dr. (a) Suplente
ABRIL / 2010 4
À todos que contribuíram para a realização desse
trabalho. 5
[...] a modernidade une a espécie humana.
Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade
de desunidade: ela nos despeja a todos num
turbilhão de permanente desintegração e
mudança, de luta e contradição, de ambigüidade
e angústia. Ser moderno é fazer parte de um
universo no qual, como disse Marx, ‘tudo que é
sólido desmancha no ar’.
 Marshall Berman
Olhos novos para o novo! Tudo é outro ou tende
para outro!
 Pedro Kilkerry, Bahia, 19136
RESUMO
Esse estudo traz para a discussão historiográfica as festividades carnavalescas – a
micareta e o carnaval – de Santo Antonio de Jesus nas décadas de 30 e 40 do
século XX. A cidade, nesse período, passava por algumas transformações urbanas
impulsionadas pelas idéias de modernidade que adentravam no espaço citadino
através das elites locais. Na prática, havia uma incipiente modernização da estrutura
urbana, mas o discurso que propagava as idéias de modernidade assumiu
colorações intensas e marcou profundamente a cidade e o espaço da festa
carnavalesca. Sobre a micareta, com seus cordões, pranchas, carros de crítica,
batucadas e Zé-pereiras, incide o anseio de modernização das elites locais que
tentavam instituir um modelo supostamente moderno de comemoração no reino da
folia. Contudo, os grupos populares se mantêm ativos nas décadas em questão,
dividindo o espaço da festa carnavalesca com as elites locais. A partir da
justaposição das fontes e uma minuciosa leitura crítica, foi possível vislumbrar as
nuances do movimento festivo que são expostos ao longo desse trabalho. Assim,
alcançamos nosso objetivo de compreender as relações que se estabelecem entre
as festas carnavalescas, a cidade e o ideal de modernidade. Os jornais O Paladio e
O Detetive compõem o acervo de pesquisa e possibilitam ao estudo, compreender a
dinâmica da festa e o controle que as elites tentavam exercer nesse espaço. A
estas, contrapomos as fontes orais que lançam à reflexão outros sentidos de festejar
a micareta e o carnaval no período estudado. Soma-se a essas fontes, imagens que
fomentam a análise das relações entre as festas e a cidade. Esses indícios nos
levam a concluir que as representações da modernidade projetam sobre a cidade
real, uma cidade imaginada. Da mesma forma, sobre as festas reais são projetadas
festas imaginárias, ideais e condizentes com as imagens de modernização
propagadas pelas elites. Esse universo festivo, marcado pelo movimento dos grupos
carnavalescos e pelas idéias e representações da modernidade, é o objeto de
estudo dessa pesquisa.
PALAVRAS-CHAVE: festa; micareta; carnaval; modernização; Santo Antônio de
Jesus, BA. 7
ABSTRACT
This paper is a historiographic discussion about the popular festivities – micareta and
carnival – in Santo Antonio de Jesus in the 30’s and 40’s of 20th century. In this
period, the city was passing through urban transformations provoked by the modern
ideas introduced in the city space through the local elites. There was a simple
modernization of the urban structure, but the discourse which disseminated the ideas
of modernity left its mark on the city and the carnival party space. About the micareta,
with its ropes, pranchas, floats, beats and Zé-pereiras, arise the longing of
modernization of local elites who tried to establish a model allegedly modern of
celebration in the revelry kingdom. However, the popular groups stayed alive in the
decades in question, separating the carnival party space with the local elites. After
the juxtaposition of sources and a meticulous critical reading, it was possible glimmer
the nuances of the festival that are exposed in this paper. So, the aims of understand
the relations establish between the carnival parties, the city and the modernity ideal
were reached. The news papers O Paladio and O Detetive compose the search and
enable to the study, the comprehension of the party dynamics and the control that
the elites tried to exert on the space. We confront these sources to the oral ones
which reflect different ways to celebrate the micareta and carnival in the period
studied. In addition to these sources, pictures that stimulate the analysis of the
relation between the festivities and the city were added. These evidences lead to the
conclusion that the modernity representations exert a pictured city on the real city.
Likewise, over the real parties, pictured parties are projected, ideal and befitted to the
pictures of modernization propagated by the elites. This festive universe, marked by
the carnival groups’ movement and the ideas and representation of modernity, is the
object of this research.
KEYWORDS: party; micareta; carnival; modernization; Santo Antônio de Jesus, BA. 8
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 01 – Chegada do trem em Santo Antônio de Jesus................26
Figura 02 – Aspecto de um dia de feira..............................................31
Figura 03 – Sede do Clube Palmeirópolis...........................................38
Figura 04 – Convite para os bailes do Clube Palmeirópolis................39
Figura 05 – Integrantes da Escola de Samba Psicodélicos.................42
Figura 06 – Anúncio da Loja das Estrelas...........................................59
Figura 07 – Anúncio do concurso para Rainha e Princesas da
micareta...............................................................................................60
Figura 08 – Resultados da apuração do concurso para Rainha e
Princesas da micareta.........................................................................60
Figura 09 – Panfleto carnavalesco......................................................62 9
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................... 10
2 A CIDADE .............................................................................................. 25
2.1 O palco da festa .................................................................................... 28
2.1.1 Aspecto de um dia de feira ..................................................................... 29
2.2 Dos cordões ao trio elétrico................................................................. 34
2.3 Micarêmes, micaretas... carnavais .......................................................43
3 E AÍ A BRINCADEIRA COMEÇA........................................................... 54
3.1 A fina flor e os máscaras farroupilhas ............................................... 57
3.2 Nas artérias da cidade ......................................................................... 71
4 O GRITO DO CARNAVAL...................................................................... 84
4.1 Uma versalhada supimpa .................................................................... 90
4.2 O carnaval... nos braços de Morfeu! ................................................... 95
4.3 Nos recantos da memória................................................................... 101
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................. 107
FONTES.................................................................................................. 112
REFERÊNCIAS .................................................................................... 114 10
1 INTRODUÇÃO
Reinado de Momo, tempo de riso e fantasias, de música que faz ecoar nas
artérias da História a voz silenciosa, eufórica e festiva dos ritos gestados pela
emoção. Palco de confronto, mudanças e movimento, no qual desfilam carros de
crítica, máscaras, alegorias luxuosas, limões-de-cera e “tambor feito em casa” 1
.
Espaço de (re)invenção simbólica do humano em seu meio social de atuação,
vivência e sobrevivência.
Discussões historiográficas são intermináveis. A cada tempo emergem
angústias, anseios que impelem os historiadores a (re)avaliar as questões do
passado, imbuídos de um tempo presente vivo e marcante. Desta relação, ecoam
novos sentidos, métodos, idéias que fazem do estudo da história um processo
dinâmico em construção permanente. A análise de um único tema suscita inúmeras
abordagens sempre condicionadas às demandas do presente que as contem. E
afinal, é cada vez mais presente a idéia de que as escolhas historiográficas têm
suas implicações sociais e políticas.
No século XX, os historiadores protagonizam uma renovação da escrita da
história ao manejar recursos teóricos e metodológicos disponíveis em outras
disciplinas acadêmicas. Essa colheita de insights, em áreas de conhecimento como
a antropologia e a sociologia, desencadeia a expansão e a redefinição da política
que envolve a produção de conhecimento em história.
 A reorientação das discussões no cerne das ciências humanas, a mudança
de ênfase dos estudos históricos, a adoção do uso de fontes como a literatura e os
depoimentos orais, denota um momento de renovação intelectual no qual emerge
uma preocupação com as análises históricas e um olhar atento e arguto direcionado
para as singularidades das trocas culturais. 2
 Dessa forma, conforme afirma Hunt, é importante considerar que:
Os documentos que descrevem ações simbólicas do passado não
são textos inocentes e transparentes; foram escritos por autores com
diferentes intenções e estratégias, e os historiadores da cultura
devem criar suas próprias estratégias para lê-los. Os historiadores
1
 Augusto Soares da Silva, 87 anos. Feirante. Entrevista realizada em 13/12/2005. Santo Antônio de Jesus.
2
 SEVCENKO, Nicolau. A ficção capciosa e a história traída. In: GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e
história. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 13-20. 11
sempre foram críticos com relação a seus documentos – e nisso
residem os fundamentos do método histórico.3
 A metodologia de pesquisa que antes de mais nada envolve o ato de lidar
intimamente com as fontes, define a face crítica do saber histórico. A este processo
o historiador deve permanecer atento para não tomar “os textos e as imagens de um
certo período como espelhos, reflexos não problemáticos de seu tempo.” 4
 A partir da assertiva de que todo vestígio produzido pelo homem pode servir
de fonte para o conhecimento histórico, cabe ao pesquisador explorar as
especificidades de cada testemunho, historicizar a fonte em estudo, inseri-la no
movimento da sociedade, investigar as formas de construção ou representação da
sua relação com a realidade social, interrogando sobre os testemunhos intencionais
e não intencionais. Em suma, por em prática uma crítica perspicaz da fonte, já que o
passado ganha vitalidade e significado a partir do trabalho de captura do presente.
Seguindo nesta trilha, Roger Chartier defende que o historiador da cultura
deve ter em vista que os textos, com os quais trabalha, atingem os leitores de
formas distintas e individuais.5
O domínio de Momo ocupou inúmeras laudas na historiografia e levou
pesquisadores a devassar os meandros da folia em busca dos sentidos do riso.
Inesgotável como toda pauta da historiografia, vem a ser nessas páginas objeto de
estudo confrontado com as angústias e anseios do agora.
Alguns pensadores da festa defendem que o Carnaval possui origem
milenar6
. Para esses, os antigos festejos greco-romanos eram uma forma de
carnaval. Essa análise é feita a partir da associação do carnaval aos ritos de
inversão que demarcam um afastamento, mesmo que temporário, da vida cotidiana.
Esse pensamento justifica de certa forma, a idéia de que existe uma linha
evolutiva do carnaval, mas coloca a festa diretamente relacionada aos rituais de
3
 HUNT, Lynn. Apresentação: história, cultura e texto. In: HUNT, Lynn. A Nova História Cultural. 2. ed. São
Paulo: Companhia das letras, 2001. p. 18.
4
 BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p.33.
5
 CHARTIER, Roger. Textos, Impressões, Leituras. In: HUNT, Lynn (org.). A nova história cultural. 2. ed.
São Paulo: Companhia das letras, 2001. p.211-238.
6
 Na consagrada análise sobre a cultura popular na Idade Média, Bakhtin recorre ao paganismo para explicar a
origem do carnaval, acentuando a identificação entre as saturnais romanas e o carnaval. Ver BAKHTIN, Mikhail
M. Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. São Paulo:
HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1993. José Carlos Sebe também defende que a origem
do carnaval pode estar na antiguidade egípcia. Ver SEBE, José Carlos. Carnaval, carnavais. São Paulo: Ática,
1986. 12
inversão7
. Essa linha de análise não é a única forma de estabelecer uma
compreensão da festa de Momo.
Entre as festas da Antiguidade, as bacanais descontroladas e a festa
burguesa civilizada não se estabelece uma linha evolutiva.
Bacanais, festas de loucos e carnavais são festejos diferentes com
lógicas próprias unidas pelo fato de serem, todas elas, festas. Os
ritos de exagero, inversão ou deboche presentes em todos esses
eventos aproximam-nos, mas não os tornam ‘fases’ distintas de uma
mesma festa. 8
Outra perspectiva de análise considera que o Carnaval só existe após o
estabelecimento pela igreja de uma data fixa para a quaresma. Mary Del Priore
argumenta que:
Ainda que haja antepassados do carnaval na longínqua babilônia e
na Roma Antiga, é no calendário cristão que brotam suas raízes mais
evidentes[...] por volta do ano 1000, a organização definitiva do
tempo cristão assinala a ruptura alimentar entre os períodos de
abundância e de jejum. Para marcar o período em que era preciso
deixar os prazeres da mesa e da carne, os clérigos forjaram a idéia
de carnis privium ou carnis tolendas (abstenção de carne). 9
Luiz Felipe Ferreira, partidário desta versão, ressalta que o Carnaval é
firmado como um período do ano e não como um tipo único de festa. Os dias que
antecediam a quaresma eram dedicados aos excessos e também aos ritos de
inversão da ordem que se destacavam, mas conviviam com outras formas como os
exageros, as caricaturas e os descontroles.
Na pesquisa, colocamos em foco dois espaços de carnavalização existentes
na cidade de Santo Antônio de Jesus: o carnaval e a micareta. As festas são
comemoradas em datas diferentes. Logicamente, o carnaval acontece em período
estipulado pelo Calendário litúrgico, geralmente no mês de fevereiro. Já a micareta
acontece sempre depois da Semana Santa, mas em dias variáveis.
Esses espaços de comemoração serão analisados. Sobre a micareta nos
deteremos com mais atenção ao longo desse trabalho. Mas, antes de adentrar no
universo festivo santantoniense, vamos analisar algumas interpretações que
circundam o carnaval.
Segundo Luiz Felipe Ferreira, no início do século XIX, essa idéia do Carnaval
como festa de inversão foi utilizada pela elite francesa. Para o autor, nesse período
7
 FERREIRA, Luiz Felipe. O Livro de Ouro do Carnaval brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
8
 FERREIRA, 2004, p. 67.
9
 DEL PRIORE, Mary. Outros Carnavais. Nossa História, Ano 2, n. 16, fevereiro de 2005. p.16. 13
tentou-se estabelecer uma linha evolutiva para a festa carnavalesca que conduziria
para o carnaval das elites francesa. Nessa perspectiva o carnaval das elites
francesas era colocado como o legítimo herdeiro da tradição milenar, o verdadeiro
carnaval. Toda manifestação que não se enquadrasse nesse conceito de carnaval
era o não-carnaval, portanto indigno do panteão das festas ditas civilizadas. Essa
compreensão foi manejada na implementação da festa carnavalesca em outros
países, inclusive no Brasil. 10
O texto de Luiz Felipe Ferreira apresenta informações importantes para
delinear a história do Carnaval, contudo O livro de ouro do Carnaval brasileiro não
aprofunda a análise de muitas questões inerentes ao universo festivo brasileiro. 11
A partir da convenção de que os dias anteriores à quaresma são de
comemoração carnavalesca as disputas pelo espaço se estabelecem em investidas
de ocupação, imposição de pontos de vista e formas de brincar. “
Se no início do carnaval não havia grandes lutas pela conquista das
ruas dos burgos medievais” – ocupadas em abundância pelas festas
do povo – à medida que as classes dominantes se envolvem a
querela se torna mais e mais importante, a ponto de podermos
afirmar atualmente que é exatamente essa batalha que faz com que
o Carnaval tenha sentido.12
As disputas pelo domínio no universo momesco nem sempre são encenadas
em lutas físicas: o embate pode ser travado no campo do simbólico. No campo do
risível, muitas vezes configurado também como campo de batalha, a balança tende
a pender para o lado que detém o poder. Mas, as contendas que tiveram como palco
o reino de Momo nem sempre foram resolvidas de forma tranqüila.
No Rio de Janeiro, as elites, apesar das tentativas, não obtiveram êxito em
seu propósito de expulsar das ruas a festa popular. 13
Para entender o espaço de comemoração carnavalesca, sobretudo após o
século XIX, é preciso:
[...] compreender a disputa travada para se saber quem é seu dono.
De um lado, a elite, que inventa o próprio significado da folia e
procura impor a festa imaginada por ela como a única verdadeira, de
outro lado, as camadas populares, divididas entre a atração pelos
10 Cf. FERREIRA, 2004
11 Outro autor que descarta a origem pagã da festa carnavalesca é o espanhol Julio Caro Baroja. Ver SOIHET,
Rachel. Reflexões sobre o carnaval na historiografia: algumas abordagens. Tempo 7. Rio de Janeiro, v. 7, p.
169-188, 1999.
12 FERREIRA, 2004, p. 69.
13 CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia: uma História Social do Carnaval carioca entre 1880 e
1920. São Paulo: Cia. das Letras, 2001. 14
fascinantes eventos que a elite propõe e o saudável impulso de
esculhambação.14
No tabuleiro, as elites, as autoridades e os adeptos dos limões-de-cheiro
posicionavam-se em disputa pelas ruas carnavalescas: às investidas contra os
brinquedos populares se interpunha a insistente presença destes nas ruas
brasileiras. A frente de combate ao considerado ‘bárbaro’ festejo fora de um
determinado padrão, intentava não só proibir, mas também substituir a festa popular
por uma forma elegante e moderna: os bailes à fantasia.
Os bailes carnavalescos à francesa aportam em terras brasileiras com ares
de sofisticação. Trazem consigo a regra básica de controle absoluto e ordenação
dos salões. O salão era espaço para os mascarados, não se podia fumar e o silêncio
era exigência durante a execução das danças. 15
 No itinerário momesco soteropolitano os bailes públicos e os préstitos dos
clubes carnavalescos, com seus carros de crítica e de idéia, que chegavam a atingir
alguns metros de altura, se posicionaram nas trincheiras da folia para “[...] suplantar
a ‘grosseria’ do entrudo, cujo espírito sobrevive, vestigial, nos cordões, nos blocos e
nas mascaradas avulsas.” 16
Esse Carnaval civilizado é apresentado como “[...] um grande acontecimento
que envolve a todos, que é congraçador, democrático [e envolve] a participação livre
e igualitária de toda a população da cidade [...]”17. Cabe ressaltar que esse modelo
de Carnaval que se coloca como democrático, é pensado e instituído com o fim de
extinguir das ruas formas populares de festejar.
 Na Bahia já se falava em Carnaval desde a década 1840. Era relacionado
pelos leitores dos jornais do período aos bailes realizados em salões fechados e
sujeitos a um controle rigoroso, neles só podendo ingressar os convidados.
Os primeiros bailes foram organizados em Salvador mais ou menos
na mesma época da sua chegada ao Rio de Janeiro, primeiros anos
da década de 1840. Seus freqüentadores formavam a elite da
cidade, contudo deveriam informar previamente quantas pessoas
14 FERREIRA, 2004. p. 65-66.
15 FERREIRA, 2004. p.110.
16 FRY, Peter; CARRARA, Sérgio; MARTINS-COSTA, Ana Luiza. Negros e brancos no Carnaval da Velha
República. In: REIS, João José. Escravidão e Invenção da Liberdade: estudo sobre o negro no Brasil.
Brasiliense, 1988. p. 251.
17 FRY; CARRARA; MARTINS-COSTA, 1988, p. 245-246. 15
acompanhariam o portador do convite intransferível para evitar as
confusões das ruas no recinto do baile.18
Nos anos de 1860, o Teatro São João em Salvador era palco de sofisticados
bailes de máscaras no período carnavalesco. A Traviata, ópera italiana empolgava a
quadrilha que iniciava o baile. E noite adentro eram tocadas diversas valsas e
polcas. Mascarados, os foliões se divertiam entre quadrilhas, óperas e o Galope
Infernal que encerrava o baile.19
No despontar do século XX, alguns ritmos são incorporados aos bailes. Cakewalks20 e maxixes empolgaram os salões. “Mas será a chamada marchinha que
tomará conta dos salões carnavalescos e, logo depois, das ruas das cidades
brasileiras” abrindo alas para o desfile de foliões no reino de Momo21
.
Em Salvador, o samba foi a música predominante depois da passagem do
século XIX. Essa presença marcante influenciou a adoção desse ritmo nas festas
momescas santantonienses. Como será exemplificado posteriormente, o samba
acompanhou muitos cordões, batucadas e outras manifestações tanto das elites
quanto populares.
Os sambas eram comuns nas ruas em dias de festa na Bahia, mas
despertavam olhares reprovadores por serem considerados espaços que favoreciam
a violência, a desordem moral e a corrupção dos costumes.22
Além das disputas há nesse espaço de festa o diálogo. As diversas festas,
populares e elitistas, se influenciam mutuamente, gerando outras festas que se
colocam novamente em diálogo, num movimento incessante de criação e recriação
da folia. A partir dessa concepção vamos analisar os meandros da micareta de
Santo Antônio de Jesus.
Os domínios carnavalescos conquistaram muitos pesquisadores que
dedicaram seus estudos e uma curiosidade inquietante à análise das artimanhas da
folia. O carnaval foi e será pauta de muitas pesquisas: sua polissemia atrai os
18 VIEIRA FILHO, Raphael Rodrigues. A africanização do Carnaval de Salvador, BA: a re-criação do
espaço carnavalesco (1876-1930). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Dissertação, São Paulo,
1995.p.92.
19 VIANNA, Hildegardes. Do Entrudo ao Carnaval na Bahia. Revista Brasileira de Folclore. Ano V, n. 13,
set/dez 1965.
20 Uma forma de dança que tem origem entre os negros americanos. Ver: FERREIRA, 2004.
21 FERREIRA, 2004. p.123.
22 ALBUQUERQUE, Wlamira Ribeiro de. Algazarra nas ruas: comemorações da Independência na Bahia
(1889-1923). Campinas, SP: editora da UNICAMP/ Centro de Pesquisa em História Social, 1999. 16
olhares que adentram ávidos em seu espaço, em busca dos múltiplos significados
de carnavalizar.
Em Santo Antônio de Jesus, as festas carnavalescas, e principalmente a
micareta, comportam diversas manifestações festivas. No carnaval, os populares
estavam presentes com o seu Zé-pereira, em grupos fantasiados e mascarados a
cantar “[...] o samba [que] às vezes ia até de manhã”23
.
Nas décadas em que se concentra esse trabalho, os cordões das senhorinhas
das elites não compõem as festividades do carnaval, com a mesma intensidade em
que estão presentes na micareta. As elites santantonienses comemoram o carnaval
em bailes realizados nas sedes dos clubes da cidade. Outra opção que se
apresentava para as elites era o deslocamento para o carnaval soteropolitano. As
visitas à capital, além da diversão, tinham o sentido de buscar novidades para
incrementar a micareta. Veremos no decorrer desse texto que o referencial externo é
marcante nessa festa.
Na micareta, os representantes das elites e os populares ocupavam o espaço
festivo, levando para as ruas cordões, pranchas, batucadas, Zé-pereiras, marujadas
e outras formas menos freqüentes nessa data, como o Bumba-meu-boi. Essa
diversidade encontrada nas fontes, será exposta e analisada com mais atenção nas
próximas páginas.
No reino do Carnaval impera a heterogeneidade e nesse espaço podem se
expressar conflitos, mudanças e movimentos. O carnaval, ao longo da história,
aglutinou festejos e brincadeiras do povo e da elite, “significando coisas diferentes
para diferentes pessoas”24. Festejar a micareta – e o carnaval – significou coisas
diferentes para os inúmeros participantes, nos diversos momentos vivenciados pela
festa santantoniense.
Tanto a micareta quanto o carnaval, são apreciados em Santo Antônio de
Jesus. Nas décadas de 1930 e 1940, período estudado nessa pesquisa, as duas
datas são comemoradas. As camadas mais populares estão presentes em ambas,
com seus grupos fantasiados, improvisados ou não. Os representantes das elites
locais retiram suas apresentações do espaço público, durante o carnaval e
concentram seus esforços na micareta, realizada depois da Páscoa. Essa relação
será discutida mais profundamente mais a frente nesta dissertação.
23 Augusto Soares da Silva, 87 anos. Feirante. Entrevista realizada em 13/12/2005. Santo Antônio de Jesus.
24 BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p.215. 17
Ao longo do trabalho, quando falamos em festas carnavalescas estamos
fazendo referência ao carnaval e à micareta. Essas festas, apesar das diferenças
nas datas e nos títulos, apresentam formas de comemoração coincidentes, afora
apenas os divertimentos da elite, mais recolhida no carnaval e pública na micareta.
Outros elementos aproximam as festas. Nas fontes estudadas, sobretudo nas
narrativas dos depoentes, o carnaval e a micareta estão intrinsecamente
relacionadas.
A pesquisa surgiu no arquivo empoeirado da cidade de Santo Antônio de
Jesus e foi tomando forma entre as notas dos jornais e as falas desgastadas pelo
tempo, mas, ainda capazes de entoar as notas que embalavam versos e canções
carnavalescas. Entre esses vestígios do passado, emerge uma movimentada
micareta, que fez ecoar nas artérias modernizantes de Santo Antônio de Jesus nas
décadas de 1930 e 1940 o som inebriante da alegria que rejuvenesce!
O Carnaval sempre foi adorado, mas a Micareta é que foi a grande paixão dos
santantonienses. A festa, capaz de atrair grande público em toda região, agitava e
coloria as ruas, praças e salões com máscaras e fantasias. Despertava grupos
foliões dos mais variados tipos e colocava as senhorinhas em um movimento
incansável pela primazia dos folguedos.
Essa é a micareta de Santo Antônio de Jesus, cidade que, na primeira
metade do século XX, é marcada por feiras fervilhantes, crescimento das vias
urbanas, tentativas de ordenação do espaço citadino e momentos de festa com a
chegada do trem que era mais um fator aglutinante, promovendo a reunião de
corpos e constituindo espaços de sociabilidade na vida do Recôncavo Sul.
 Entre os anos de 1930 e 1950 o espaço da Micareta é visto com especial
atenção pelos jornais da cidade, sobretudo O Paladio – representante do olhar e dos
anseios das elites santantonienses. Mas, no espaço festivo, as elites tiveram que
dividir a cena com grupos miúdos, farroupilhas e maltrapilhos que ano após ano,
insistentemente ocupavam as ruas da cidade.
 Esclarecer sobre o termo elite é importante para a leitura desse trabalho. O
uso do termo elite tem como objetivo fazer referência aos setores abastados da
sociedade santantoniense – setores dirigentes ligados à política, à produção agrícola
e pecuária e ao comércio – e à elite intelectual envolvida na elaboração do jornal O
Paládio. Podemos então falar de elites que direta ou indiretamente se envolviam nas
festividades carnavalescas. 18
 Outro elemento importante que é preciso iluminar antes de prosseguir com a
análise da micareta é a questão da modernidade. É possível falar de modernidade
em Santo Antônio de Jesus nas décadas de 30 e 40 do século XX?
 A cidade experimenta algumas transformações: projetos de urbanização são
colocados em prática. O que existe na cidade, na prática, é uma modernização.
Mas, podemos falar em idéias de modernidade que levam a projetos de
modernização de muitas cidades como Salvador, Jacobina, Feira de Santana e
Santo Antônio de Jesus.
No cerne dessas idéias, a micareta de Santo Antônio de Jesus foi articulada
como símbolo de modernização da cidade. Entretanto, não estamos tratando de
uma festa homogênea. Há uma diversidade de manifestações sob o título de
micareta.
As festas carnavalescas constituem o objeto de estudo desse trabalho. Esses
espaços de comemoração são observados a partir da leitura, da análise e crítica das
fontes, com o objetivo de apreender os sentidos de festejar e os elos entre o espaço
da festa, a cidade e as idéias de modernidade.
 Na pesquisa sobre a micareta santantoniense de meados do século passado
figura em destaque entre as fontes disponíveis, os periódicos que circulavam na
cidade. O Paladio e O Detetive são peças necessárias para a compreensão dos
sentidos da festa nas ruas da cidade, mas experimentar no campo de realização e
análise de entrevistas nos coloca diante de outros olhares e interpretações sobre a
festa. Essas fontes formam a base a partir da qual foi possível desenvolver a
pesquisa.
 O jornal O Paladio, editado semanalmente25, teve grande circulação na cidade
na primeira metade do século XX. A coleção analisada na pesquisa reúne
exemplares esparsos desde 1901 a 1949, sendo que a maior porcentagem
concentra-se nas décadas de trinta e quarenta. Ao longo de sua história o título do
referido jornal foi grafado de várias formas. Nesse texto optamos por adotar a última
grafia encontrada nos exemplares do início de 1950 – O Paladio.
 Os números do jornal O Paladio, que compõem o acervo de pesquisa foram
encontrados nos Arquivos Públicos das cidades de Santo Antônio de Jesus e
Nazaré e em arquivos pessoais de alguns moradores da cidade.
25 O jornal O Paladio, fundado em 1901, é editado semanalmente até 1952. A partir desse ano o jornal declina,
mas ainda se encontram exemplares esparsos. 19
Outro periódico analisado foi O Detetive, editado semanalmente em Santo
Antônio de Jesus e descrito em sua primeira página como “Jornalzinho Humorístico,
Literário e Noticioso”. Era publicado semanalmente. Os exemplares analisados
nesse estudo compõem uma coleção que reúne as publicações de 1950 e 1951. As
citações dos jornais – O Paladio e O Detetive – presentes nesse texto seguem a
grafia da época da publicação.
Ao longo da pesquisa diversas entrevistas foram realizadas. Nesse trabalho,
essas narrativas entremeiam o texto, desde sua gestação até a redação final da
dissertação. Optamos por não fazer correções gramaticais nos depoimentos, pois
entendemos que cada indivíduo fala de um lugar e sua forma de falar pode revelar
sobre suas vivências e emoções. Alguns depoimentos estão identificados com os
nomes completos dos entrevistados; outros têm sua identidade protegida – a pedido
dos próprios entrevistados. Abreviamos os primeiros nomes e mantemos o último
nome por extenso.
 Realizar uma leitura da sociedade implica em considerar forças convergentes
e divergentes. Estudar a história é tatear a fonte, seus contornos, vazios, sulcos,
ranhuras e possibilidades de interpretação e manipulação. Assim como o historiador
é condicionado ao seu tempo e a historiografia atende aos anseios do seu tempo
social – ou à moda –, o discurso produzido em determinado período atende a
interesses de grupos engajados em projetos igualmente condicionados.
 Os jornalistas do Paladio também partilhavam das idéias correntes em seu
tempo, e entre elas os eflúvios modernistas marcaram decisivamente a leitura do
jornal sobre a Micareta. Dessa forma, uma leitura histórica deve considerar que:
O ‘lugar’ onde o relato é produzido é de evidente relevância, e como
não há lugar no mundo que não esteja mergulhado na linguagem e
na cultura, de qualquer lugar que se fale – e qualquer que seja a
intenção do escrevente –, não há como erradicar o ponto de vista, a
incerteza, a contradição e a parcialidade da narrativa. Toda palavra
reflete uma perspectiva particular esculpida por fatores sócioculturais, políticos e pessoais. 26
 Na introdução de Literatura como Missão, Nicolau Sevcenko define com estas
palavras a relação entre a literatura e seu tempo:
Fora de qualquer dúvida: a literatura é antes de mais nada um
produto artístico, destinado a agradar e a comover; mas como se
pode imaginar uma árvore sem raízes, ou como pode a qualidade
26 MALUF, Marina. Ruídos da memória. São Paulo: Siciliano, 1995. p. 34. 20
dos seus frutos não depender das características do solo, da
natureza do clima e das condições ambientais?27
 A alegoria traçada é significativa para pensar não apenas a fonte literária,
mas toda e qualquer fonte que envolve manifestações artísticas como a Micareta ou
o Carnaval, que no percurso de investigação possa servir no alcance dos objetivos
delineados pelo historiador.
À medida que os vestígios humanos são produzidos no tempo e no espaço, a
leitura e a crítica das fontes devem considerar os fatores históricos que modelaram,
impulsionaram e limitaram os indícios da marcha do tempo, as obras literárias, os
documentos oficiais, as fontes orais, a arquitetura, enfim, os vestígios que servem de
escopo para a escrita da história.
 A historicidade condiciona a experiência, e estas, por sua vez, imprimem uma
feição própria na produção do homem. Dessa forma, o que é narrado, o que é
escrito terá as marcas de seu autor. A narrativa “mergulha a coisa na vida do
narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do
narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso”.28
 É o que define Michel de Certeau como a marca indelével da história: a
particularidade do lugar de onde se fala e do domínio em que a investigação foi
realizada. A historiografia, tanto quanto a pesquisa, se articula com um lugar de
produção em termos sociais, econômicos, políticos e culturais. É em função deste
lugar que se instauram métodos, interesses e se organizam documentos e
questões.29
 O jornal O Paladio possui uma historicidade que, à medida que é investigada,
encaminha a apreensão dos sentidos de suas narrativas sobre a festa e a cidade. O
universo festivo é palco de confrontos, apropriações e recriações; é lugar de
aquilatação social no qual os grupos envolvidos expõem suas aptidões, aspirações e
interesses, elementos próprios da existência humana em sociedade.
O espaço festivo consciente ou inconscientemente subversivo é parte do
universo de confrontos e tensões da cultura, no qual o homem cria e (re)significa seu
mundo. Nesse sentido, tanto quem atua nos cordões quanto o público que assiste as
27 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República.
2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 29.
28 BENJAMIN, Walter. O Narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Lescov. In: BENJAMIN, Walter.
Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história cultural. 7 ed. São Paulo: Brasiliense,
1994. p. 205.
29 CERTEAU, Michel De. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. 21
ditas festas capta, reelabora e apropria-se do festejo de maneira singular. Os
membros da comunidade estabelecem relações diferenciadas com os sistemas
simbólicos.30
Nas décadas de 30 e 40 do século XX o ideal de modernização passa a
influenciar as elites locais. Falar em modernização nesse período, em Santo Antônio
de Jesus, significa fazer referência a uma série de reformas e melhoramentos
urbanos introduzidos na cidade.
Mesmo que essa urbanização não fosse concretizada na prática – as
reformas só se intensificam depois da década de 1950 – ela estava presente nos
projetos, nos anseios, no discurso das elites. Essas idéias não influenciaram tão
somente modificações do espaço urbano; elas circundam o universo da folia e
imprimem a marca do ideal modernizador na micareta de Santo Antônio de Jesus.
Os ritos da micareta não estão inclusos em uma cadeia inalterável de
transmissão; antes, percorrem a vida social pelo filtro da
interpretação/reelaboração/apropriação tendo como norteador a identificação entre
sujeito e prática festiva. Mesmo que houvesse a tentativa de controlar formal e
legalmente a participação popular na Micareta, há a possibilidade da existência de
uma relação entre o público e a apresentação que só poderia existir se houvesse um
elo entre as partes.
 Toda a vida santantoniense, inserida nos vagões da história, desliza sobre os
trilhos da modernização e adquire um novo sentido ao longo do século XX. Assim
como a ordenação da festa busca atender uma “necessidade” civilizatória, o espaço
da cidade deveria seguir um ritmo progressista. O modelo de civilização que se
tentava imprimir na Micareta era almejado para a sociedade por uma elite que
alimentava as aspirações da modernidade.
 A sociedade se inscreve de diversas formas em seus autores/leitores dos ritos
cotidianos. A ação de interpretar, reelaborar encontra-se em uma dinâmica
constante com as expectativas e aptidões dos indivíduos que, a partir desta relação
se apropriam de forma diferenciada dos rituais que compõem a vida social. 31
30 Sobre as relações entre os indivíduos e os sistemas simbólicos ver DESAN, Suzanne. Massas, comunidade e
ritual na obra de E. P. Thompson e Natalie Davis. In: HUNT, Lynn (org.). A Nova História Cultural.. 2 ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2001.
31 Ver BAKHTIN, Mikhail M. O espaço e o Tempo. In:_______. Estética da Criação Verbal. 3 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2000. 22
 O avanço dos elementos representantes da modernidade não influi apenas
nas festividades populares ou elitistas rearticulando ou desarticulando suas práticas;
infiltra-se nos meandros imaginários (re)configurando as formas de ser, viver e ver a
sociedade santantoniense.
O ideário moderno concebeu representações das cidades, de festas e de
tantos outros espaços de sociabilidade, nos quais o homem constituiu e
(re)significou seu mundo. São essas marcas de historicidade rasgadas no tempo,
delineadas no espaço que o historiador incessantemente deseja devassar com os
olhos do pensamento.
A ativa desarticulação experimentada por diversas práticas festivas tem
motivos fincados além da superfície visível dos processos de modernização; é nas
entrelinhas da representação, no espaço em que se instauram modelos
preferenciais de urbanizar e festejar que a festa construída sob laços de
solidariedade encontra o desafio de viver no tempo em que os homens
comercializam a diversão.
 Após essa introdução seguirá uma parte intitulada A Cidade, na qual
realizamos uma leitura das vivências dos moradores de Santo Antônio de Jesus,
explorando os espaços de sociabilidade – imersos no processo de reelaboração das
formas de pensar e viver a cidade – como os dias de feira, a estação ferroviária e os
dias de micareta.
 A análise apresenta os primeiros elementos para pensar a construção da
urbanidade e a influência marcante das idéias de modernização na reconfiguração
do espaço urbano e festivo em Santo Antônio de Jesus.
 São apresentados na discussão alguns símbolos que em momentos
diferentes, representaram a modernização da cidade.
 Os processos de troca entre o mundo urbano e rural, emergem no texto a
partir da sua relação com o universo festivo. Trazemos à tona as interações entre o
campo e a cidade, mas também as relações que se estabelecem entre as cidades
da região.
 A partir dos relatos dos jornais, dos depoimentos e das imagens,
reconstruímos a urbanidade para analisar as dinâmicas engendradas no espaço
citadino, entre as vivências dos moradores da urbe.
 Traçar o movimento da festa ao longo do século XX, a partir da leitura dos
jornais e dos depoimentos, é imprescindível para compreender os sentidos da folia 23
momesca em Santo Antônio de Jesus. Esse movimento é apresentado, a fim de
contextualizar e aclimatar a discussão em torno da micareta das décadas de 1930 e
1940.
 A avaliação dos espaços da festa aponta as diversas manifestações que a
compõe em momentos diferentes: o desfile de cordões, batucadas, Zé-pereiras,
bailes, escolas de samba e jegue trio abrem alas para a discussão do capítulo
seguinte.
E aí a brincadeira começa, entre o repicar dos tambores de lata e o canto
das senhorinhas, trazendo a discussão desenvolvida no período sobre a festa.
Nesse ponto, apresentamos as festividades da micareta e o sua repercussão na
sociedade santantoniense.
 Nessa parte ressaltamos o papel da imprensa na divulgação das festas nas
cidades da região, o que, como veremos, colaborou nos processos de troca diversas
desencadeados nesse período. A afluência dos visitantes nos dias de micareta era
um dos caminhos de troca de informações que enriqueciam o espaço da festa.
 Outro meio apresentado no trecho, é o freqüente deslocamento dos grupos
foliões santantonienses em direção a outras cidades da região e também para a
capital do estado. Veremos que nesse deslocamento estão presentes as
filarmônicas, que animavam a festa aqui e em outras cidades.
 Para realizar essa leitura manejamos os jornais ao lado dos depoimentos
orais, o que nos permite compor um panorama das representações criadas em torno
da cidade e da festa e analisar as idéias de modernidade que circundam esses
espaços no período estudado.
 O olhar modernizador lançado pelas elites é colocado em discussão à medida
que é exposto o movimento dos cordões das senhorinhas e dos grupos farroupilhas
nas ruas da cidade.
 Ressaltamos as colorações modernizantes que as elites tentam imprimir
sobre a cidade e a festa, a partir da leitura do Paladio. A cidade e a festa são vistas
a partir das representações produzidas pelas elites, neste periódico. A estas,
contrapomos outras visões, para analisar os possíveis significados que a micareta
assumiu para seus diferentes participantes.
 Veremos que, para além dos anseios das elites colocando os cordões das
senhorinhas como símbolos de modernização e condenando os farroupilhas, o
espaço festivo possui uma dinâmica que envolve infinitas vivências dos foliões. 24
 O último capítulo, O Grito do Carnaval, apresenta as dificuldades que a festa
enfrenta para a sua realização. O título parece destoar do assunto tratado nessa
parte do texto, mas faz referência a algumas manifestações que surgem em
oposição ao desânimo das ruas no período carnavalesco, no início da década de
1950.
 A composição do cenário da festa é mais uma vez analisada, a partir da
leitura dos artigos e outros escritos presentes nos jornais e da memória dos
depoentes. O referencial externo, presente na festa, é ratificado.
 Nesse capítulo exploramos o arrefecimento da festa e os protestos gerados
em torno desse processo, para compreender as mudanças operadas no espaço da
micareta. Veremos que o retraimento atinge o carnaval e depois a micareta em
Santo Antônio de Jesus.
 Apresentamos indícios de que a festa não desaparece. Ela reside na
memória, que nesse capítulo é analisada com mais profundidade. A nostalgia e o
contentamento que envolvem os depoimentos sobre a festa, colaboram para o
entendimento dos diferentes significados que a festa assume.
 Norteia a discussão a noção de que a memória age seletivamente ao
mergulhar nas lembranças, escolhendo o que lhe apraz para narrar as festas do
passado.
 Colombinas, Pierrôs e Arlequins, ricos ou pobres, saltitaram entre nuvens de
confete. Nosso estudo propõe acompanhar os foliões dominados pela alegria das
micaretas em busca dos significados construídos no espaço da festa e para a festa,
a fim de desvendar as tensões e conflitos desenvoltos no domínio do riso.
 As linhas que se seguem estão dispostas a analisar o som inebriante da
micareta de Santo Antônio de Jesus; o canto renitente nos recantos da memória, em
papéis envelhecidos, em fotografias desbotadas pelo tempo. 25
2 A CIDADE
[...] as cidades são como transformadores elétricos:
aumentam as tensões, precipitam as trocas, caldeiam
constantemente a vida dos homens. (BRAUDEL, F.,
1967, p.439)
A cidade é lugar de sociabilidade, em que os processos de troca são
catalisados em espaços de encontros e desencontros, como as feiras, as estações
ferroviárias, os dias de festa, as tardes na praça e o dia-a-dia entre o lazer e o
trabalho marcando a vivência e a sobrevivência dos citadinos. Santo Antônio de
Jesus pode ser assim definida.
 A cidade de Santo Antônio de Jesus cresce atrelada à produção agrícola e
aos trilhos que remodelam o cenário urbano. Seu desenvolvimento é acelerado
principalmente a partir de 1950 com a consolidação das estradas de rodagem.
 Nas décadas de trinta e quarenta do século XX, período em que se concentra
esse estudo, esses elementos estão presentes na expansão e no movimento da
cidade. Nesse contexto, a construção da urbanidade é influenciada pelo ideal de
modernização. Cultivado entre as elites, esse ideal interfere nas imagens e
representações elaboradas sobre a cidade, imprimindo a necessidade de alcançar a
ordem, a limpeza e o progresso – imprescindíveis para atingir o patamar de
modernização pretendida.
Não podem ficar os cidadãos da nossa amada cidade inertes diante
dos novos tempos. Uma nova era de progresso se anuncia!! O facho
de luz emanado pelos novos ares deve inebriar a todos e lançal-os
ao exercício primoroso de construção da ordem pública. [...] se a
administração pública faz a sua parte, custeando reformas não é
outro o motivo: dar uma feição moderna a esta gleba – já elogiada
por seus visitantes. [...] nós também temos que fazer o que nos cabe
para que a limpeza, a ordem e o progresso sejam máximas da nossa
terra.32
 Enquanto as idéias de modernidade conquistam adeptos, símbolos são
eleitos para ratificar a modernização em Santo Antônio de Jesus – um deles é a
micareta, exaltada como sinônimo de elegância e progresso: “A micareta é, sem
duvida, a nota elegante que invade nossas ruas, dando sinceras provas do gosto
pelas coisas modernas”. 33
32 Vida Urbana. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, p.02 , 25 de maio 1939.
33 As Festas Pagãs. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, p. 01, 26 de mar. 1934. 26
 Nas páginas do jornal O Paladio outros elementos são exaltados: o
calçamento das ruas, o Projeto Luz e Força, os trilhos e a chegada do asfalto. A “[...]
nova era de progresso [...]” é anunciada em narrativas elaboradas, mostrando uma
cidade “[...] que sempre esteve iluminada pelos clarões da modernidade [...] num
êxtase de contentamento [...]” pela modernização de Santo Antônio de Jesus. 34
 O calçamento das “[...] novas artérias [,] o despontar feliz [da] nova era de
eletricidade [...]” são acontecimentos que marcam presença nas notas que exaltam a
cidade: eles são responsáveis pela “[...] elevação do nome” da cidade na região;
pela atribuição à cidade, a condição de “[...] moderna, civilizada e progressista”. 35
 A imagem a seguir, captada no período, traz a convivência de dois símbolos
que em momentos distintos representaram modernização para Santo Antônio de
Jesus: o carro e o trem.
 Figura 01 – Chegada do trem em Santo Antônio de Jesus
 A chegada do trem transformava a estação em lugar de encontro, de troca de
notícias e mercadorias, de afluência de pessoas. Até a década de 1940, a chegada
do trem era espaço reservado de uma das formas de sociabilidade santantoniense.
Mas, os carros de praça já estavam presentes na cidade – e no espaço da festa.
 A partir de 1945 os transportes sobre trilhos entram em declínio e a chegada
do asfalto favorece a presença dos carros na cidade: os automóveis entram para o
cenário como o principal meio de transporte.
34 A modernização da nossa cidade. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 29 de mar. 1949, nº 2.306, ano 48.
35 A Luz – Nova era de progresso. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 21 de mar. 1949, nº 2.305, ano 48. 27
 Sobre as intenções do fotógrafo que registrou a cena no movimento citadino,
não podemos lançar um juízo preciso. Entretanto, o olhar captou uma imagem
interessante e através dela podemos fazer uma leitura do período marcado pela
emergência e decadência de símbolos da modernização.
 A imagem representa a disputa entre o antigo símbolo de modernização – os
trilhos – e a novidade – o asfalto representado pelo automóvel. Os veículos, lado a
lado, parecem disputar uma corrida, essa porfia vai decidir o novo caminho do
desenvolvimento urbano, determinando quem vai assumir a evidência no cenário
modernizante.
 Nos trilhos deslizam a máquina adentrando 1940 na tentativa de se manter no
apogeu; no calçamento em expansão e na chegada do asfalto os automóveis
sobrepujam a ferrovia, assumindo destaque no transporte de mercadorias, pessoas,
notícias e no cortejo da folia.
 Antigamente os trilhos eram o meio de transporte utilizado para a condução
de muitos foliões e grupos organizados em outras cidades até a micareta de Santo
Antônio de Jesus. Os visitantes buscavam os famosos cordões das senhorinhas, as
pranchas, os carros de crítica e de realce. Os automóveis têm uma interferência
maior na micareta: estavam presentes na festa desde a década de 1930 e ensaiam
sua proeminência, utilizando as teias urbanas asfaltadas cada vez tomando maiores
proporções.
 A cidade estava se transformando e aderindo a um modelo de urbanidade
considerado moderno. As mudanças que se vêem no período estudado são
incipientes, mas, as idéias se fortalecem nas representações da modernização
veiculadas pelo Paladio.
 Se por um lado não era possível ser moderno, era necessário parecer
moderno ou mesmo instituir através do discurso, uma imagem de uma cidade em
modernização.
 Ao longo desse trabalho veremos que no interior desse ideal de
modernização, a realização da micareta vai ser colocada como essencial para a
cidade: a micareta é representada como símbolo de modernização. As relações que
se estabelecem entre as idéias de modernização, a festa e a cidade, assinaladas
nessas linhas, serão esmiuçadas nas páginas seguintes. 28
2.1 O palco da festa
 Nos primeiros 60 anos da República brasileira as cidades proliferavam, mas o
cotidiano de grande parte da população se mantém agrário. Nesse contexto, se
estabelece uma inter-relação entre o campo e a cidade36 em espaços de
sociabilidade como os barracões de fumo e café; as romarias; os dias de feira que
levavam à cidade de Santo Antônio de Jesus os lavradores da região.
A chegada do trem constituía mais um espaço de sociabilidades na vida do
Recôncavo Sul, desde tempos remotos, conforme destaca Charles Santana. Assim:
[...] os trabalhadores do campo e das cidades, os escravos, negros
livres, caixeiros, sitiantes, meeiros, rendeiros e vaqueiros corriam
para as estações ao anuncio da proximidade do trem, instigados por
todo tipo de novidades e curiosidades possíveis de serem por eles
transportadas [...] As cidades fervilhavam à chegada dos trens.37
 A chegada dos trilhos remodela o quadro urbano. “As estações emergem, de
algum modo, enquanto síntese qualitativa de poderosos processos culturais ao
transformar a frieza dos trilhos em ricos momentos urbanos”38. Nos trilhos
congregavam significados históricos, elaborados e reelaborados no interior de
vivências urbanas e rurais.
 Na festa carnavalesca pode ser notada a presença dos trilhos, “[...] Desde
segunda-feira descem, tanto no matutino como no trem de Jequié, famílias e mais
famílias destinadas à cidade de Salvador, para ver o Carnaval.” 39
No ano seguinte, continuam as informações em relação à folia sobre os
trilhos:
Folgamos em noticiar que na próxima quadra micaremica darão um
brilho especial nas ruas da nossa cidade o Batalhão da folia da
vizinha cidade de Nazaré. Foi-nos entregue o comunicado ontem [...]
as senhorinhas estão ensaiando belas canções em homenagem ao
rei Momo e prometem muita animação [...] no próximo dia 14 de abril
tomam o primeiro trem em direção a esta cidade. 40
36 Através da análise da literatura e do pensamento social inglês, o crítico marxista Raymond Williams estuda as
relações entre o campo e a cidade, refletindo sobre os modos de vida urbano e rural, bem como as mudanças
pertinentes à sociedade inglesa. Ver WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade na história e na literatura.
São Paulo: Companhia das letras, 1989.
37 SANTANA, Charles d’Almeida. Dimensão Histórico Cultural: “Cidades do recôncavo”. Programa de
Desenvolvimento regional Sustentável – Recôncavo Sul – CAR – Consultor: Charles d’Almeida Santana.
Salvador: Abril de 1999, p. 23.
38 SANTANA, 1999, p. 28.
39 O Rei Momo e sua época. O Paladio,Santo Antônio de Jesus, 13 de fev. 1942, nº 2.037, ano 41.
40 A micareta se aproxima. O Paladio, mar. de 1942, nº 2.040, ano 41. 29
Os trilhos têm um papel importante nos encontros e trocas no espaço da
festa. Famílias se deslocavam para a capital do Estado para participar dos festejos
carnavalescos e ao retornar traziam consigo impressões e leituras das formas de
carnavalizar encontradas em Salvador. Essas impressões poderiam influenciar e
servir de modelo para a organização dos cordões da micareta que estariam nas ruas
no mês seguinte. Por sua vez, a micareta também recebia visitantes, foliões das
cidades vizinhas que encontravam nos trilhos o transporte para os dias de festa.
As ferrovias podem ser vistas nesse contexto, além do econômico, nas
dinâmicas urbanas e na criação da paisagem citadina. No Recôncavo, após 1945 a
Tream Road41 declina e, pouco a pouco, é substituída pela BR 101. A mudança
alavanca o comércio de algumas cidades, dentre elas, está Santo Antônio de Jesus
beneficiada por sua localização as margens da BR.
Essa transformação do cenário implica na reelaboração de modos de pensar
e viver a cidade; há um processo instituidor da cidade enquanto um espaço que
possuía a capacidade de amainar as dificuldades vivenciadas por homens e
mulheres, que frente às novas linhas históricas “[...] criaram e recriaram o viver
citadino no jogo das relações sociais urbanas [...]”
42, alinhavando a vida social dita
moderna às suas existências e aspirações.
O universo urbano santantoniense se constitui assim em vivências dinâmicas:
nos processos de troca entre o mundo rural e a cidade; nos trilhos que em
determinado momento representavam a modernização, mas declinam ao passo que
o asfalto vai tomando o seu posto de principal via de transporte de mercadorias e
pessoas; na feira que aglutinava produtos, pessoas e vivências; e na festa da
micareta que, nos anos 1930 e 1940, vai ser aclamada como símbolo da
modernização da cidade – como veremos nas linhas que se seguem.
2.1.1 Aspecto de um dia de feira
 Santo Antônio de Jesus cresceu associada à ferrovia – responsável pelo
transporte de mercadorias, de pessoas e idéias – além de se destacar politicamente.
41 Empresa responsável pela administração da linha ferroviária que interligava cidades do Recôncavo e do Vale
do Jequiriça, transportando mercadorias, informações e pessoas. Sobre esse assunto ver: SANTANA, 1999.
42 SANTANA, 1999, p. 100. 30
A estação da Tream Road instalada na cidade e a chegada do trem aglutinavam
pessoas:
A ESTAÇÃO ferroviária de Santo Antônio de Jesus estava localizada
bem no centro da cidade – na Praça Félix Gaspar. Era agradável o
movimento ali apresentado pela presença de casais de namorados,
de jovens e velhos; de homens e mulheres; todos no vai e vem digno
de nota. Uns embarcando ou recebendo amigos ou mercadorias; às
vezes, encomendas. O fato é que a bela visão a todos encantava. A
ESTAÇÃO FERROVIÁRIA tornava-se, por assim dizer, ponto de
encontro para a boa parte da comunidade.43 [grifo do autor]
 Ponto de encontro, a estação pode ser considerada como um lugar de festa,
de sociabilidade. Os trilhos levavam e traziam notícias, novidades e mercadorias –
relacionadas ao universo carnavalesco também – favorecendo o comércio que
naquele momento se desenvolvia e que seria a marca da cidade.
 A urbanidade no Recôncavo emerge com a marca dos trilhos e dos
trabalhadores da farinha e suas feiras em cidades como Conceição do Almeida e
Santo Antônio de Jesus.44
A Cidade das Flores – Santo Antônio de Jesus era chamada assim devido à
enorme quantidade de flores nas proximidades – posteriormente conhecida como
Cidade das Palmeiras, a partir da década de 1950 experimenta um desenvolvimento
de suas atividades comerciais. A feira, que nessa época já concentrava as
produções das cidades circunvizinhas, marcava também o cenário citadino.
A feira, um lugar de possíveis encontros entre o mundo rural e urbano, pode
ser entendida como lugar de criação de modos de viver e resistir às dificuldades do
cotidiano; um lugar de sociabilidade, de comprar e vender, de contato social. Até
hoje, a feira é um dos destaques de Santo Antônio (re)criando em seus espaços,
vivências diversas ao congregar indivíduos de toda a região.
 Assim, “[...] a cidade fervilhava nos dias de feira, para onde convergiam todas
as estradas da região, caminhos de escoamento dos produtos em direção a variados
municípios do recôncavo.”45
43 SALES, Geraldo Pessoa. Santo Antônio de Jesus -1965 - A cidade que encontrei. Santo Antônio de Jesus, p.
43.
44 SANTANA, 1999. p. 51.
45 SANTANA, 1999, p. 51-52. 31
Figura 02 – Aspecto de um dia de feira
 A imagem comunica o burburinho entre comprar e vender a infinidade de
produtos extraídos da terra, do trabalho manual. O olhar do fotógrafo registrou a
amálgama de pessoas em movimento, em busca dos melhores preços, – ou do que
era possível comprar com os parcos recursos disponíveis – dos melhores produtos
para levar à mesa de suas famílias.
 Nessa agitação da feira, as lentes capturam a imagem de determinado ângulo
tornando possível ver barracas, animais, cestos e centenas de pessoas atraídas
pelo comércio nas ruas santantonienses. Mas, antes das lentes, estava o fotógrafo
registrando seu olhar sobre um dia de feira.
 É muito provável que este, compartilhasse dos ideais de modernização então
vigentes e talvez seja do seu punho a inscrição que se encontra na parte superior da
imagem: “Aspecto de um dia de feira”. Qual o sentido dessa frase, em um momento
em que as elites locais aspiravam por uma estética citadina organizada e limpa?
Qual aspecto o fotografo desejava ressaltar? 32
 A partir dos dados da pesquisa podemos aventar a possibilidade do registro
ter como objetivo ratificar a necessidade de encaixar a feira no projeto de
modernização e urbanização que se pretendia para Santo Antônio de Jesus.
Segundo essa interpretação, a frase que aparece na imagem não teria a função
apenas de título ou legenda indicando o espaço e o movimento que ali existia. Mas,
seria uma referência ao “[...] pardieiro já condenado [...] pelo modernismo”.46
 A feira atraia vendedores e compradores, assim como a festa atraía visitantes
e foliões de outras cidades. Nesse lugar de convivência, batucadas foram
organizadas e sambas foram compostos. A renda de feirantes, como o Sr. Augusto,
custeou fantasias incrementadas e improvisadas com
[...] o que tinha no momento... o que podia comprar... e também o
que tinha na casa. A gente usava de tudo. Lata virava tambor, pano
velho virava fantasia... isso tudo era pra [sic] sai madrugada, rua
abaixo, rua acima. A gente fazia todo ano... e aí a brincadeira
começava.47
 Em sua fala o Sr. Augusto faz referência a sua participação no animado Zé
Pereira que anunciava o início da festa em Santo Antônio de Jesus. De participação
livre, essa manifestação reunião foliões de fantasias improvisadas ou compradas.
 Diferente das batucadas e marujadas, apresentadas durantes as festividades
da micareta por grupos uniformizados, no Zé Pereira se encontravam “[...] tudo que
era tipo de fantasia”.48
 Para além das diferenças entre uma e outra, é imprescindível vislumbrar que
o espaço da feira não se constitui apenas em comprar e vender, em busca de
recursos para a sobrevivência: na feira reside também o lúdico. Carnavalizar a vida
e rir do outro e de si mesmo era possível, ao menos duas vezes no ano – no
carnaval e na micareta.
 A sociedade que vivencia os dias custosos e suados de trabalho, entre o
fervilhar da chegada do trem e o burburinho da feira, aspira e legitima o seu desejo
através da tentativa de adoção de uma estética urbana que seria apropriada para a
cidade que se queria modernizante.
46 Mercado Municipal. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, p. 01, 03 de fev. 1949, nº 2.301, ano 48.
47 Augusto Soares da Silva, 87 anos. Feirante. Entrevista realizada em 13/12/2005.
48 Augusto Soares da Silva, 87 anos. Feirante. Entrevista realizada em 13/12/2005. 33
O vestuário, os enfeites, os lugares de comemoração, o modo de
dançar ao som de determinada música eram sinais exteriores para
dar visibilidade ao desejo de superioridade econômica, social e
cultural.49
Mas, a percepção da vida citadina de Santo Antônio de Jesus nas décadas
em questão não deve desprezar a inter-relação fundamental com o campo. Na feira,
nos momentos de festa, sejam elas profanas ou religiosas, esses mundos se
encontravam. O espaço do recôncavo baiano desenvolveu-se num processo
histórico-social eminentemente rural.
Do campo chegavam os trabalhadores com os produtos que eram vendidos
na feira, que por sua vez era um lugar de formação dos grupos e batucadas da
micareta. Os trabalhadores das fazendas das famílias abastadas, também
participavam da festa.
Naquela época se “trabalhava no fumo” e os trabalhadores viviam entre “a
roça e a cidade”, visitando a urbe em crescimento durante as festas da igreja e “a
micareta, a batucada, os cordão [...] era uma folia bonita que a gente assistia na
cidade”.50
A partir dos anos 30 do século XX as idéias de modernidade começam a
marcar o cenário santantoniense cada vez mais intensamente. Essas idéias levam a
projetos de modernização dos espaços urbanos, pois tudo deveria assumir um
“aspecto de coisa moderna”. Há uma transformação nos costumes e hábitos da
sociedade; novos valores configurando novos modos de viver expressos no
cotidiano e nos momentos da festa carnavalesca. 51
Tais idéias ocuparam os espaços do carnaval e da micareta. As elites locais,
inebriadas pelo ideal de progresso e modernidade, estipulam como preferencial os
cordões “[...] bem organizados e bem vestidos”, entretanto, outros grupos menos
abastados também ocupam o espaço da festa.
49 SANTOS, Vanicléia Silva. Os ritos e os ritmos da micareta no Sertão da Bahia. Projeto História: Festas, ritos
e celebrações. Revista do Programa de Estudos Pós-graduados em História e do Departamento de História da
PUC-SP. São Paulo: EDUC, nº 28, Jan/Jun. 2004, p. 255.
50 Rafael Galvão Santos, 80 anos. Lavrador. Entrevista realizada em 26/07/2008. Muniz Ferreira.
51 Mercado Municipal. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, p. 01, 03 de fev. 1949, nº 2.301, ano 48. 34
2.2 Dos cordões ao trio elétrico
Teve foi festa aqui [...] eu vi de tudo. Batucada,
marujada, chegança, escola de samba, cordão [...] jegue
com som nas costa [...] tudo na micareta, no carnaval
também tinha, mas animada era a micareta, que vinha
depois da páscoa. Eu vi muito grupo desfila aqui pela
rua, de fantasia, máscara, nos carro cheio de flor [...]
tinha roupa de pirata, de índio, princesa [...] e Momo que
vinha no Zé-pereira [...] ficava brincano [sic] na praça e
pelas rua [sic] o dia todo [...] de criança até moço, eu vi
festa aqui. Tinha folia nas casa [sic] também [...] e nos
clube [sic] do tenente. [...] teve muito trio, muita
versalhada, muita dona bonita na rua [risos] ai a gente
gostava. (SOARES, E.F., 2008)
É sempre com um tom descontraído que o Sr. E. F. Soares nos relata as
diversas formas de festejar que desfilaram e conviveram nas ruas santantonienses.
Ao longo da entrevista, mergulhava em minutos de silêncio – talvez para tatear a
memória – e em seguida voltava à narrativa entrecortada por um riso de
contentamento.
Enquanto as lembranças eram extraídas da memória, a festa parecia ganhar
vida diante dos seus olhos. De alguma forma, as perguntas de uma pesquisadora
curiosa, catalisaram o processo. Dos recantos da memória ecoavam os risos e mais
uma vez o Sr. E. F. Soares estava no cortejo da folia – a festa que não estava mais
nas ruas, desfilava nas avenidas da memória.
No espaço da micareta – e do carnaval – encontramos expressões distintas,
aproximadas pela sonoridade dominante no depoimento e marcante nas festas
momescas: o riso.
O panorama composto pelos fragmentos do jornal e pelos depoimentos orais
permite entrever as diferentes feições que a micareta santantoniense assumiu até
sua desarticulação na década de 90.
A avaliação dos espaços da festa entre as décadas de 1920 e 1990 apresenta
tanto a realização dos festejos nas ruas da cidade quanto nos espaços privados dos
grandes clubes da época. Os desfiles de cordões, Zé-pereiras e carros de crítica
foram soberanos por mais de três décadas.
Entre 1920 e 1950, alguns obstáculos se interpõem na realização da festa,
mas as ruas da cidade são coloridas pelas fantasias farfalhantes das senhorinhas,
Zé-pereiras e batucadas. Das varandas, “[...] nos passeios das casas, famílias eram 35
vistas reclinadas em cadeiras, deleitando-se com as mutações contínuas de cores,
de vozes, de caras e de roupagens.”52
A micareta, em ascensão nas décadas de 1930 e 1940, é marcada pelo
anseio de modernização acalentado pelas elites.
Nos centros mais avançados tem-se belas apresentações em louvor
ao deus do ‘pecado’ [...] Santo Antonio de Jesus não pode ficar no
marasmo que vem dominando as ruas nos dias de carnaval. Nossa
terra, exemplo para toda região pelo seu destino de progresso e
modernização, não pode deixar de ter a sua festa carnavalesca com
o brilho e a elegância que merece.53
O modelo dos “centros mais avançados” é colocado nas linhas do Paladio
como referência para a sociedade santantoniense. A cidade é representada, nas
páginas do jornal, como exemplo a ser seguido devido ao progresso e modernização
aqui encontrados.
As capitais e outras cidades eram modelos almejados pelas elites
santantonieses, que por sua vez colocam a Cidade das Flores em uma posição de
destaque: Santo Antônio de Jesus era modelo para as cidades circunvizinhas. Era o
centro para o qual convergiam mercadorias de toda a região; o lugar de
comemoração carnavalesca, com desfiles, cordões e batucadas que atraiam elogios
dos visitantes.
Há nesta terra manifestações claras de progresso e de ordem que só
se vislumbram nos centros mais avançados. [...] não podem nossas
ruas ficarem no marasmo nos três dias de festa carnavalesca [...]
precisamos espantar o sono que parece inebriar a nossa mocidade
[...] em nossa terra reside a luz do progresso elogiado por quantos a
visitam.54
Nas décadas de trinta e quarenta do século XX as representações
construídas para a cidade e para a festa carnavalesca em Santo Antônio de Jesus
possuem a marca das idéias de modernidade.
No espaço da micareta convivem diversas manifestações festivas, encenadas
tanto pelas elites como pelos populares. Os cordões acompanhados pelos carros de
crítica e de realce, pelas pranchas alegóricas enfeitadas com “[...] artigos da mais
fina elegância [vindos diretamente] das lojas mais exuberantes da capital [...]”, eram
portados e encenados nas ruas pelas senhorinhas da elite55
.
52 A Mi-carême. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, p. 02, 1 de abr. 1932, no
 1.567, ano 31.
53 O Paladio, Santo Antônio de Jesus, p.01, 12 de fev. 1946.
54 O Carnaval. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, p. 03, 03 de mar. 1944.
55 A festa em Santo Antônio. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, p. 01, 08 de abr. 1936. 36
Muitos grupos envolviam integrantes tanto das elites, como populares. Um
exemplo é o Zé-pereira, presente na festa desde 1920 com forte composição
popular. Na década de 1940, essa manifestação tem a adesão de membros das
elites:
[...] saia de madrugada, com o dia já clareando [...] no começo era só
a gente, depois foi chegano [sic] mais [...] tinha gente que trabalhava
nas loja [sic]. Tinha dono de loja também [...] e os moço fazendeiro
daqui, da fazenda de fumo e de farinha. Eles não morava [sic] por
aqui. Vinha [sic] só pra micareta. Pra [sic] vê [sic] as festa e brinca
[sic] também. Era uns moço [sic] boa gente.56
O Zé-pereira contou, em alguns anos, com a participação da elite em seu
cortejo anunciador da festa. Também outras manifestações envolviam elite e
populares, como por exemplo, as batucadas uniformizadas. Apesar dos
componentes desses grupos pertencerem sobretudo aos setores mais populares –
feirantes, barbeiros, pedreiros – setores mais abastados participaram de alguns
desfiles:
[...] batucada a gente fazia todo ano. Juntava na feira [...] enquanto
tava [sic] na lida, tava pensano [sic] na festa. [...] trabalhava pra
compra o pano da roupa. Guardava um pouquinho de dinheiro aqui,
outro ali, pra [sic] pode arruma tudo, pra fica bonito. [...] quando os
dono do comércio brincava também era mais fácil porque conseguia
mais coisa. Eles lá se entendia e o preço ficava melhor pra gente.57
Por mais que as elites aparecessem em uma ou outra festa, as manifestações
populares presentes no espaço do carnaval e da micareta, não se enquadravam no
projeto modernizador formatado pelas elites. Muito embora não haja uma repressão
violenta a suas expressões e presença nas ruas da cidade, há uma condenação
propagada sobretudo nas páginas do jornal O Paladio:
Não se pode ver em dia de festa tão brilhante e ordenada grupos
farroupilhas saltitando pelas ruas. Que todos querem tomar parte na
festa entendemos: ela é fonte de contentamento. Mas que se faça
com graça e beleza, ordem e alegria[...] Esses grupos devem tomar
como exemplo as galantes senhorinhas e seus cordões limpos, ricos
e luxuosos [...] a festa deve ser digna dos ares progressistas que
invadem nossa amada terra.58
Além dos desfiles dos cordões, bailes de máscaras eram realizados nesse
período. Os clubes, as sedes das filarmônicas Carlos Gomes e Amantes da Lyra e o
56 A. S. Almeida, 87 anos. Feirante. Entrevista realizada em 27/01/ 2008. Santo Antônio de Jesus.
57 João Sousa, 83 anos. Feirante. Entrevista realizada em 19/04/2007. Santo Antônio de Jesus.
58 Mais uma vez os farroupilhas... .O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 22 de abr. 1944, ano 43. 37
salão da Sociedade Beneficente dos Artistas eram ocupados pelas fantasias, foliões
e músicas nos dois períodos em que Momo reinava na vida da cidade.
As 16 horas, um bloco procedente da Bela Vista foi o primeiro a
quebrar o silêncio tumular da cidade com os repiques estridentes dos
seus tambores [...]
A noite vários bailes: na Sociedade dos Artistas, Mercado Municipal,
Soc. Amantes da Lira, Sindicato Fumagero e Predio Escolar. Todos
eles, como sabemos deram animados, e se prolongaram até à alta
madrugada. E assim se passou mais um episódio da Micareta em
Santo Antonio de Jesus.59
Na micareta e no carnaval, os desfiles dos grupos pelas ruas muitas vezes
era encerrado com a realização de bailes em locais fechados ou nas praças da
cidade.
O largo da 2 de julho e da Felix Gaspar, como arco-íris noturno,
apresentava extensa e magnífica rede de lâmpadas multicores, como
incentivo aos bailes que ali se prolongaram até a madrugada.60
Tocava do começo até o fim. Ia passando pelas rua [sic], sempre
encontrava outro grupo também. [...] tinha festa de madrugada a
madrugada. Batucada, marujada, cordão [...] passava a tarde de uma
rua a outra. Tinha sempre gente pelos passei das casa [sic]. Depois
ia pro salão da filarmônica e brincava até o galo canta.61
A realização dos bailes era freqüente. Mas nem todos os salões estavam
abertos para todos os foliões. As elites possuíam seus clubes, reservados para as
suas festas. Os populares também realizavam bailes, mas ocupavam outros
espaços como o salão da Sociedade Beneficente dos Artistas, a sede do Sindicato
Fumagero e até mesmo as praças.
Depois do desfile é que a festa começava. Tinha baile em todo canto
da cidade. A gente ouvia falar dos bailes do sindicato [...] quem não
ia pro salão ficava na rua mesmo e ai dançava até tarde [...] tinha na
beneficente também, mas eu só ia pro salão da filarmônica. Ia do
cordão pro baile. [...] era sempre a Carlos Gomes que acompanhava
a gente. Enquanto tinha desfile os músicos estavam lá.62
Um dos espaços destinados às elites mais destacados nesse cenário era o
Palmeirópolis.
59 A Micareta. O Detetive, Santo Antônio de Jesus, 8 de abr. 1951, n 188, ano 4.
60 A Mi-careta se apresentou como poude. O Detetive, Santo Antônio de Jesus, 23 de abr. 1950, n 141, ano 3.
61 Lourenço Santana, integrante da filarmônica Carlos Gomes. Pedreiro. Entrevista realizada em 02/08/2007.
Santo Antônio de Jesus.
62 R. F. Santos,85 anos. Professora. Entrevista realizada em 23/03/2008. Santo Antônio de Jesus. 38
Figura 03 – Sede do Clube Palmeirópolis.
Localizado na Rua Sete de Setembro, o Palmeirópolis abria seus salões para
a realização de animados bailes no carnaval e na micareta:
Houve bailes nas duas noites, tanto no edifício da Sociedade ‘Carlos
Gomes’ como no chalet onde funcionava a Prefeitura e na RadioPalmeirópolis. As danças estiveram animadas. As diversões
concluíram sob o amparo feliz da ordem e da paz.63
Nesse espaço reservado para as comemorações carnavalescas, a diretoria
do clube estava sempre atenta para garantir a paz e a ordem, condizentes com o
modelo elegante – almejado pelas elites locais – de festejar a micareta e o carnaval.
O convite para os bailes da micareta de 1942 era acompanhado por uma
advertência:
63 Micarêta. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, p. 04, 22 de abr. 1942, nº 2.045, ano 41. 39
Figura 04 – Convite para os bailes do Clube Palmeirópolis.
As tentativas de ordenação da festa carnavalesca eram direcionadas para as
ruas e para os espaços privados. Em 1942, a diretoria do clube Palmeirópolis
estabelece para seus associados o traje preferencial a ser exibido durante os seus
bailes. Foi estabelecida a censura às fantasias consideradas impróprias para o
ambiente de elegância e ordem que as elites tentavam construir nos espaços de
sociabilidade de Santo Antônio de Jesus.
Os mascarados e fantasiados – aprovados pela direção do clube – coloriam
as dependências do Palmeirópolis, ao som da “vibrante charanga” das filarmônicas
Carlos Gomes e Amantes da Lyra. Era um dos espaços destinados à diversão das
elites santantonienses. Mas, a música da festa dependia das filarmônicas, formadas
sobretudo por representantes de setores mais populares.
Morava em Conceição do Almeida, aqui perto. Mudei pra cá em
1918. Em 1928 comecei a ensaiar pra filarmônica [...] tocava no
coreto na tarde do domingo [...] nas festas do padroeiro, na micareta
[...] tocava pra o desfile dos cordão [...] tinha festa na sede da
filarmônica também [...] e no Palmeirópolis era festa animada,
fantasia bonita, tudo muito ordenado. Sempre tocava [...] ou a Carlos
Gomes ou a Lyra, a gente se revezava na micareta pra anima a festa
[...] muitos companheiro também tocava, companheiro da lida.
Trabalhava de pedreiro. Tinha trabalhador da feira, barbeiro, tinha
moço que trabalhava ali na Rui Barbosa. Por ali também passava na 40
micareta com os cordão[...] Essa mão calejada [mostra as mãos]
levantou muita casa e animo muita festa.64
A partir da década de 60 do século XX entram para o calendário das
micaretas, as festas no “Clube dos 100”, voltadas para as elites da cidade. E o Clube
dos 1000 destinado ao entretenimento dos trabalhadores. O Clube dos 100 e o
Clube dos 1000 foram fundados pelo Tenente Geraldo Pessoa Sales. O primeiro foi
construído no bairro São Cristóvão e inaugurado em 15 de junho de 1967. O Clube
dos 1000, destinado à classe operária, foi construído no bairro Santa Terezinha,
mais distante do centro da cidade e inaugurado em 1º de maio de 1975.65
Na década de 70 já encontramos indícios da presença energizante do trio
elétrico no período da micareta:
Tinha muita coisa na festa, muito grupo animado que saia pela rua.
No meu tempo de moço, eu participava [...] sai na batucada [...] a
gente ensaiava ali na Juraci. Depois foi acabano [sic] [...] Em 70 a
alegria da rua era o trio, todo mundo brincava. Tinha ainda cordão,
batucada que saia uma vez ou outra, mas a folia era mesmo o trio.
[...] teve também o Jegue... e tudo era pra [sic] brincar a micareta.66
O depoimento nos traz uma festa em que manifestações diversas convivem.
Os cordões, apesar de não estarem presentes com a mesma freqüência das
décadas de 1930 e 1940, se exibem em alguns anos ao lado de novidades como o
trio elétrico. A referência ao jegue, que aparece no final, diz respeito a uma curiosa
idéia: o Jegue Trio.
O Sr. Augusto Soares, em uma passagem do seu depoimento, relata a
presença do Jegue Trio nas ruas: “Teve um vereador que botou, o Bomfim Merces...
era um jegue com som nas costas... rua abaixo, rua acima as pessoas seguiam esse
jegue... Já brinquei muito assim.”67
Esta figura que se tornou popular, foi uma idéia gestada por Bomfim Mercês.
O autor da idéia ao saber que a prefeitura não iria patrocinar um trio elétrico para
animar a festa nas ruas da cidade, pensou em um “quebra-galho” que acabou
fazendo sucesso. Assim foi associado ao jegue uma bateria de 12 volts, dois
projetores de som, um guitarrista e um baterista. Em 1975 o jegue trio é inaugurado
64Lourenço Santana, integrante da filarmônica Carlos Gomes. Pedreiro. Entrevista realizada em 02/08/2007.
65 Ver VALADÃO, Hélio. Santo Antônio de Jesus, sua gente e suas origens. Santo Antônio de Jesus, 2005.
66 E. F. Soares, 82 anos. Aposentado. Entrevista realizada em 25/ 03/ 2008. Santo Antônio de Jesus.
67 Augusto Soares da Silva, 87 anos. Feirante. Entrevista realizada em 13/12/2005. Santo Antônio de Jesus. 41
nas ruas da cidade. Não só o jegue fez sucesso, um ano depois Bomfim Mercês foi
eleito vereador e o mais votado do município.
Quando o trio do jegue passava a coisa fervia, as ruas se apinhavam
de gente para pular, sorrir, ou simplesmente para ver o jegue trio.
Hoje, passado algum tempo, o Jegue Trio é presença obrigatória na
Micareta da cidade. Mudou muito, possuindo toda uma parafernália
de sons multiplicados por grandes caixas muitos músicos e caminhão
maior.68
Assim como a Micareta dos cordões, a inusitada idéia desperta o interesse da
cidade e da região.
Na festa a atração era o jegue. O dia amanhecia e ficava todo mundo
esperando. Todo mundo queria ver o jegue passar, cheio de enfeite,
de colorido, com aquele alto falante nas costa [...] vinha gente de
todo lugar pra ver o famoso Jegue Trio [...] era uma disputa, porque
todo mundo queria puxar o jegue, pelo menos um pouquinho, pelas
ruas. Era diversão que não acabava. 69
Ainda na década de 70 a festa assume uma forma semelhante ao Carnaval
das escolas de samba do Rio de Janeiro, com grupos organizados apresentando
baianas, porta-estandartes e outros elementos, sempre acompanhados pelas
baterias formadas pelos músicos das filarmônicas. Como podemos notar na imagem
abaixo, no estandarte segurado pela baiana, o grupo se denominava Escola de
Samba Psicodélicos.
68 Sobre o Jegue Trio ver BANCO DO NORDESTE DO BRASIL S.A.. Santo Antônio de Jesus. Ministério do
interior. Super DEPAD: Divisão de Mecanografia. Março de 1981.
69 A. P. Moraes, comerciante. 76 anos. Entrevista realizada em 02/03/2009. 42
Figura 05 – Integrantes da Escola de Samba Psicodélicos.
Nessa fase os Psicodélicos e os Energéticos fizeram a festa da cidade até
meados da década de 80, promovendo os famosos e animados bailes no Clube dos
100.
Seguindo a tradição dos cordões, esses grupos realizavam desfiles pelas ruas
da cidade. Todos os componentes usavam fantasias com as cores das respectivas
agremiações – vermelho e branco para os Psicodélicos, e preto e branco para os
Energéticos.
Neste vai e vem de cordões, blocos, grupos miúdos, zé-pereiras,
expectadores, bailes, trios e jegues, a festa alcança a década de 90 e então é
relegada à memória.
Nosso intuito, ao traçar essa periodização, é situar o leitor no movimento de
transformação da micareta na cidade de Santo Antônio de Jesus, apresentando as
feições que a festa assume ao longo do século XX.
Dos cordões ao trio elétrico, a festa carnavalesca envolveu grupos populares
e membros das elites. No decorrer do século a comemoração da micareta assume
formas diversas abrangendo múltiplas manifestações.
Para além das permanências, há, no espaço da micareta santantoniense, ao
longo do século XX, a mudança. Estudar a micareta nas décadas de 1930 e 1940 é
olhar para uma festa muito diferente da que está nas ruas em 1970 ou 1990. Nesse 43
espaço de tempo muitas formas foram adotadas, enquanto outras eram deixadas de
lado em função das novidades que apareciam – ou da mudança do gosto dos
participantes.
As senhorinhas dos cordões e “os máscaras farroupilhas” envelhecem. Na
memória desses participantes seguem as diversas práticas que coloriam e
animavam a vida citadina em 1930 e 1940.
Ao debruçar sobre as fontes, tateando os sons e silêncios que delas emanam,
à procura dos sentidos de festejar o reino de momo, adentrei pela história e por
abordagens elaboradas sobre o carnaval e a micareta. Nesse ponto, a diversidade
das análises é marcante.
Um panorama foi traçado nas linhas anteriores a fim de aclimatar o universo
festivo a ser delineado nos próximos capítulos. Essas linhas propõem abrir um
espaço de reflexão dos sentidos da folia carnavalesca no momento em que emerge
um debate caloroso e circundante das idéias de modernização e progresso, em uma
cidade do Recôncavo baiano. Antes de adentrar nos meandros da micareta e do
carnaval de Santo Antonio de Jesus, vamos deter nosso olhar nos espaços
carnavalescos soteropolitano e carioca, a fim de apreender as dinâmicas próprias
desses espaços de comemoração que, nas décadas de 1930 e 1940, são
referências para a configuração da festa santantoniense.
2.3 Micarêmes, Micaretas... Carnavais
Aquilo que se conhece atualmente como ‘carnaval
brasileiro’ é na verdade o produto de diversos discursos
que, ao longo dos últimos 150 anos, vem sendo
lentamente elaborado através de variadas disputas de
poder. Elite, povo, governo, folcloristas, jornais, rádios,
gravadora, televisão, capitais, periferias, Rio de Janeiro,
Salvador, escolas de samba, trios elétricos, Recife, São
Paulo e frevos são alguns dos muitos atores envolvidos
na construção de um significado para a grande festa
nacional. A disputa de poder envolvida na determinação
do que é esse ‘nosso’ Carnaval é, desse modo,
determinante para sua compreensão.
(FERREIRA, 2004, p. 11-12)
O movimento não é distinto na capital baiana. As rodas de samba, o entrudo,
os batuques improvisados nas festas religiosas não eram vistos com bons olhos e
contradiziam os hábitos proclamados para uma urbanidade ideal. 44
Entre as elites e os intelectuais circulava o anseio de
[...] livrar as ruas de práticas como as batucadas e sambas de roda,
claras lembranças dos tempos da Colônia e do Império, quando
aquelas eram um espaço destinado aos negros de ganho, mendigos,
moleques de recado.70
Na nova ordem republicana busca-se imprimir um novo sentido à ocupação
da rua de Salvador, mas também vigente nas cidades interioranas, mas “[...] a
capital baiana parecia pouco afeita à idéia de metrópole moderna, onde a rua
deveria ser um local de passagem, de circulação dos cidadãos”.71
O sentido de ocupação do espaço público é modificado. A rua deveria
[...] se preparar em termos estéticos, higiênicos e disciplinares, para
a emergência de uma elite urbana republicana e abolicionista que
necessita de um cenário condizente com as novas prerrogativas
políticas que se arroga. 72
Nessa fórmula não estava contabilizada a presença de divertimentos
populares, considerados como ‘bárbaros’ e ‘selvagens’, que fariam destoar do
resultado ‘civilizado’ pretendido pelas elites.
Vislumbrar a rua como um lugar de destaque na vida citadina é de suma
importância para essa pesquisa, que focaliza uma festa cujo principal cenário são as
ruas da cidade – Santo Antônio de Jesus. Pensar a cidade é pensar suas ruas como
espaços de sociabilidades, de convivências e (sobre)vivências. Nela é que são
encenados os encontros e desencontros cotidianos e festivos, e sua análise pode
ser
[...] um elemento revelador a partir do qual se pode pensar o lugar da
experiência, da rotina, dos conflitos, das dissonâncias, bem como
desvendar a dimensão do urbano, das estratégias de subsistência,
pois marca a simultaneidade do cheio e do vazio, dos sons e ruídos:
das temporalidades diferenciadas.73
70 ALBUQUERQUE, 1999. P. 24-25.
71 ALBUQUERQUE, 1999. P. 24-25.
72 FRY; CARRARA; MARTINS-COSTA, 1988, p.244.
73 CARLOS, Ana Fani A. o lugar e as práticas cotidianas. In: GONÇALVES, Neyde Maria S.; SILVA, Maria
Auxiliadora da.; LAGE, Creuza Santos (orgs). Os lugares do mundo: a globalização dos lugares. Salvador:
UFBA, 2000. p. 245. 45
Assim como nas procissões e nos cortejos do Dois de Julho, no período do
entrudo as ruas da cidade “[...] eram palco de disputas, irreverências, assimilações e
recriações das formas de apropriação do espaço urbano.”74
Analisar outros espaços e outras festas carnavalescas torna possível a
visualização das dinâmicas que envolvem o nosso objeto de estudo, contribuindo
para esclarecer as especificidades das relações entre a micareta e a cidade de
Santo Antônio de Jesus.
A capital baiana estava acostumada à folia do entrudo desde os tempos da
colônia. O Entrudo era um dos alvos para o qual convergiam as críticas dos
idealizadores do Carnaval. Introduzido no Brasil pelos portugueses, o entrudo
conquistou o gosto e as ruas brasileiras, agitando por muitos anos os dias que
antecediam a quarta-feira de cinzas.75
O entrudo era ‘uma verdadeira batalha’ e a munição era: pós brancos
e coloridos; folhas e objetos como ovos e frutas, mas sobretudo jatos
de água despejados das janelas ou lançados por seringas enormes,
e é certo que havia um prazer incontido em molhar as pessoas.76
Os bailes a fantasia surgem para fazer frente a esse costume de festejar o
carnaval arremessando pós e líquidos diversos.
Condenações ao entrudo eram comuns. Mas a prática mal vista era o entrudo
das ruas, o popular, com suas molhaçadas. Entre as famílias de posse, a brincadeira
era aceita. 77
Ao contrário do que acredita José Carlos Sebe, o entrudo não estava restrito
às ruas.78
A distinção entre o entrudo familiar e o popular não era oficial, nem tampouco
rígida. Haviam pontos de contato entre as duas formas. O espírito moleque dos
jogos era semelhante, entretanto, o entrudo desenvolvido nas ruas por negros e
74 ALBUQUERQUE, 1999, p. 25.
75 VIEIRA FILHO, Raphael Rodrigues. Folguedos negros no carnaval de Salvador (1880-1930). In: SANSONE,
Livio; SANTOS, Jocélio Teles (orgs). Ritmos em Trânsito: sócio-antropologia da música baiana. São Paulo:
Dynamis Editorial; Salvador, BA: Programa A Cor da Bahia e Projeto S.A.M.BA., 1997.
76 SEBE, José Carlos. Carnaval, carnavais. São Paulo:Ática, 1986. p. 58-59.
77 Fry, Carrara e Martins-Costa também estabelecem uma diferenciação entre a casa e a rua na realização do
entrudo. Para eles, existe “um entrudo doméstico” desenvolvido em um espaço em que homens e mais velhos
têm a precedência no resto do ano, mas na festa as mulheres tem um papel preponderante, “invertendo as
hierarquias”, e o entrudo das ruas no qual se destaca a participação dos negros. Ver FRY, Peter; CARRARA,
Sérgio; MARTINS-COSTA, Ana Luiza. Negros e brancos co Carnaval da Velha República. In: REIS, João José.
Escravidão e Invenção da Liberdade: estudo sobre o negro no Brasil. Brasiliense, 1988.p. 241.
78 “O entrudo era uma prática de rua, a céu aberto. Os participantes, sempre em grupos, entravam em confrontos,
algumas vezes por simples vontade de brincar [...]”. Ver SEBE, 1986, p. 59. 46
pobres, e o realizado pelas famílias em suas casas, eram vistos de formas bem
diferentes pela sociedade. 79
Apesar da condenação os espaços não estavam isolados: membros de
famílias que criticavam a brincadeira das ruas eram flagrados participando das
molhaçadas. O que de fato incomodava não eram os líquidos e pós atirados: a festa
abria espaço para a possibilidade, para o descontrole, enfim era “[...] tudo igual em
três dias” e essa sensação tornou-se desconfortável.
80
Não se tratava apenas [...] de exterminar limões-de-cheiro e
bisnagas. Queriam levar junto para o passado [...] todo um rol de
práticas que julgavam indignas de freqüentar as ruas, mesmo em
dias em que alegria e permissividade pareciam andar juntas. 81
No contexto carioca, esse debate alcançou o ápice na década de 1880.
Na capital baiana a prática do entrudo foi proibida em 1859 e a partir desse
momento “[...] as autoridades passam a investir também nos folguedos
carnavalescos, nomeando comissões para enfeitar as ruas, promover bailes públicos
e organizar as ‘músicas’ nos coretos.” Contudo, é possível encontrar posturas
municipais proibindo o jogo do entrudo nas ruas de Salvador até a segunda década
do século XX. 82
A tentativa de controle existia, não obstante, nem mesmo a elite abria mão da
folia entrudesca. Enquanto isso, nos jornais era travado um intenso debate que
condenava as molhaçadas e agressões do entrudo e colocava a urgência de
“civilizar” o “bárbaro” costume. “As autoridades tentavam prender, advertir e punir os
brincalhões. Mas como fazer ceder uma estripulia que envolvia quase todas as
cidades brasileiras?”83
A burguesia em ascensão viria propor a solução buscando inspirações nos
ares europeus. Os bailes de máscaras parisienses se apresentariam como a solução
no combate ao “bárbaro entrudo”. Os ideais franceses representavam para as elites
brasileiras o caminho de luz para guiar em direção à modernidade redentora dos
79 FERREIRA, 2004.
80 FERREIRA, 2004.
81 CUNHA, 2001, p. 25.
82 VIEIRA FILHO, 1997, p. 40.
83 FERREIRA, 2004, p. 101. 47
bárbaros costumes tropicais e do espaço festivo dominado pela devassidão
entrudesca. 84
No Rio de Janeiro, as grandes sociedades, nascidas sob o signo da exclusão,
se tornam uma importante forma de brincar e marcam as décadas finais do século
XIX, mas não reinauguram o Carnaval. O sentido mais amplo nas primeiras
manifestações das Sociedades era ostentar uma condição elevada, estabelecendo
uma diferenciação em relação à plebe que se divertia grosseiramente. 85
Entretanto, a presença da multidão “desclassificada” e suas formas de
brincar, tanto quanto a mistura social constatada nos bailes públicos incomodava os
idealizadores do carnaval veneziano nas ruas cariocas. Logo, no programa das
Sociedades é inclusa a idéia de substituir as formas de brincar do povo por um
modelo organizado de carnaval, intelectualizado no qual seriam extirpadas as
impurezas do populacho – interessante é que formas de festejar o Reinado de
Momo adotadas pela população dos arrabaldes são frequentemente encontradas
nos salões das grandes sociedades carnavalescas.86
Em nome da civilização e do progresso as grandes sociedades carnavalescas
do Rio de Janeiro, criadas entre 1850 e 1860, congregando foliões abastados ou ao
menos de status, proporcionaram ao público desfiles organizados, com carros
alegóricos, luxuosas fantasias, crítica política e de costumes, delineando o
movimento que propôs a substituição das formas de brincar do povo. O ideal difuso
entre intelectuais, jornalistas e talvez parte dos foliões, era “[...] civilizar as práticas
carnavalescas”.87
As diversões populares e o cortejo das grandes sociedades conviviam no
espaço carnavalesco do Rio de janeiro. Mas ao longo da década de 1890 cresce
uma nova ameaça à proposta de civilização do carnaval elaborada pelas elites.
Muitos grupos, pequenas sociedades e grêmios recreativos eram fundados todos os
dias, registrados em cartórios e buscavam autorizações nos distritos policiais para
fazer parte do Carnaval, figurando entre as novas e antigas formas de festejar.88
Entre as diferentes práticas que constituíam a folia no início do século XX,
estão os
84 CUNHA, 2001.
85 CUNHA, 2001.
86 CUNHA, 2001.
87 CUNHA, 2001.
88 FERREIRA, 2004. 48
[...] antiqüíssimos cucumbis e Zé-pereiras, pobres sociedades
suburbanas, alguns vassourinhas de animados frevos nordestinos,
cordões [...] e ranchos que surgiram nos redutos baianos próximos
ao cais do porto e ganhavam expressão no Carnaval carioca. Entre
tais práticas, os ranchos e cordões assumiram uma importância
destacada, sendo apontados de forma unânime na bibliografia como
matrizes dos atuais blocos e escolas de samba.89
Maria Clementina Cunha, em Ecos da Folia, aponta que ranchos e cordões
tinham em comum a origem social das pessoas que faziam parte dos grupos além
da notável influência baiana em sua formação.
Eram moradores dos morros, subúrbios e arrabaldes, ou arregimentados nas
profissões braçais. Mas existiam diferenças: os ranchos utilizavam alegorias sobre
carroças, enquanto os cordões seguiam a pé com variadas fantasias; cordões eram
marcados pela percussão e cantoria na qual um ou dois dançarinos fantasiados de
índio, entoavam a copla, o coro e o estribilho – apresentavam uma cantiga única,
composta especialmente para a ocasião; por outro lado, os ranchos levavam
instrumentos diversos, como violões, castanholas, pandeiros, instrumentos de corda
e sopro.90
Esses pequenos grupos almejavam o reconhecimento e a legitimidade. Os
cordões, por exemplo, que surgem em torno de velhos dançarinos de cabeça grande
e princeses saltitantes em manifestações espontâneas, pouco a pouco adotaram
para si o título de clubes, sociedades ou grêmios. É notável que
[...] sua maneira, todos esses grupos tinham como referência o
molde forjado pelas Grandes Sociedades. Em parte, faziam-no
devido às imposições do próprio aparato policial republicano, cujas
exigências se multiplicavam na concessão de autorização para sair
às ruas. Mas não se deve deixar de lado a astúcia dos foliões no
esforço de garantir um lugar autônomo na brincadeira, usando a seu
favor os instrumentos criados para controlá-los [...] 91
Se o entrudo e os máscaras avulsos despertavam incômodo, a multidão
organizada nos cordões e legalizada pelas autoridades representava um perigo
ainda mais assustador. Para além do modelo de carnaval apregoado, esses grupos
89 CUNHA, 2001, p. 152.
90 CUNHA, 2001.
91 CUNHA, 2001, p. 158. 49
levavam para a folia antigas tradições que ameaçavam o ideal civilizador dos
pedagogos de Momo.92
O que importa nesse período não é necessariamente a forma de festejar, mas
quem está presente nela. O lugar da festa determinava a tolerância ou o seu
inverso, no espaço que pode ser definido nessas palavras:
[...] pedagógico é um termo adequado para exprimir a visão de uma
parcela intelectualizada da sociedade, próxima ou dependente das
elites tradicionais, mas empenhada em projetos de transformação e
atualização do país sob uma ótica liberal e progressista. 93 [grifos do
autor]
Na folia soteropolitana os bailes públicos no Politeama e no Teatro São João,
para onde convergiam as famílias de destaque da cidade, ganharam prestígio no
século XIX. Além dos bailes, os préstitos das Grandes Sociedades e outros grupos
figuravam na festa momesca. Segundo Hildegardes Vianna, no carnaval de 1886,
Alem do Fantoches, do Cruz Vermelha e do Sacarrolhas, vieram
trazer a sua contribuição de alegria e bom gosto, desfilando a partir
das 16 horas, os Cavalheiros de Malta (da Luzo Guarani), Clube dos
Cacetes, Grupo dos nenês, Cavalheiros de Veneza, Conselheiros de
Cupido, Companheiros do Silêncio(a todos ensurdecendo com
tambores e bombo), Clube das Pêtas, Clubes das Fitas, Clube da
Pobreza, Críticos Carnavalescos, Diário das Pêtas e Comissão do
Pilar.94
Os Fantoches, o Cruz Vermelha e o Sacarrolhas são apontados como os
principais, mas outros grupos participavam dos desfiles nos carnavais baianos,
inclusive grupos negros que surgem em meados de 1890. Críticas eram dirigidas
contra os ‘africanismos’, mas estas recaíam sobretudo nos candomblés, batuques e
rodas-de-samba.
Com a inadequação do entrudo ao modelo civilizado pretendido pelas elites,
os Pândegos da África e a Embaixada Africana, clubes uniformizados negros, eram
poupados das críticas ainda mais quando a forma de desfile adotada por eles era a
utilizada pelos clubes brancos.95
Destacam-se elementos como
92 CUNHA, 2001.
93 CUNHA, 2001, p.88.
94 VIANNA, 1965, p.294.
95 VIEIRA FILHO, 1997. 50
[...] os trajes de gala, charanga com instrumentos europeus tocando
dobrados e marchas, programas escritos (fugindo da tradição da
oralidade), fogos de bengala, cavalaria, carros de idéias [...] a
incorporação aos desfiles de vários elementos da África, dobrados
com os nomes "Menelik" e "Makonem" eram tocados. Os grandes
personagens africanos eram sempre homenageados, a pomposa
cavalaria era composta de zebras, etc.96
Talvez a adoção desses elementos ditos civilizados representasse uma
estratégia no contexto em que “[...] no espaço carnavalesco oficial já estava
instituída como norma a exclusão dos afro-baianos, pois representavam para as
autoridades o ‘pernicioso’, o ‘nocivo’, enfim, o que estava contra o progresso e a
civilização.”97
Os batuques com expressiva participação negra aconteciam nas ruas de
Salvador desde o século XVIII. Essas reuniões incomodavam as elites que sempre
renovavam a legislação na tentativa de controlarem ou mesmo extinguir tais
práticas. Sambas, batuques, lundus, vozerias, danças de pretos foram alvos dessas
legislações por todo o século XIX.98
No fim do século os Pândegos da África e a Embaixada Africana manejavam
a forma elitista dos desfiles carnavalescos, no entanto, levavam para as ruas
elementos da sua história e da sua cultura alcançando prestígio entre aqueles que
condenavam as manifestações negras nas ruas soteropolitanas.
Hildegardes Vianna destaca aquele que seria a maior e mais famosa festa
patrocinada na Bahia: o carnaval de 1888. Nesse ano o desfile do Clube Fantoches
e do Cruz Vermelha teriam levado o público a um estado de euforia, pelo grande
luxo, organização e beleza das fantasias e carros. A autora narra os detalhes do
desfile:
A magnífica decoração dos carros, o brilho, o apuro, a correção dos
carros históricos, a graça e o mimo das alegorias, o luxo e o gosto
artístico, justificavam o delírio que se apossou de todos. Fantoches e
Cruz Vermelha desfilando sob chuva de rosas rivalizavam-se nas
preferências de todos. Não se podia dizer qual o mais belo nem o
mais empolgante.
[...]
96 VIEIRA FILHO, 1995, p. 126.
97 VIEIRA FILHO, 1997, p.42.
98 SANTOS, Jocélio Teles. Divertimentos Estrondosos: batuques e sambas no século XIX. In:SANSONE,
Livio; SANTOS, Jocélio Teles (orgs). Ritmos em Trânsito: sócio-antropologia da música baiana. São Paulo:
Dynamis Editorial; Salvador, BA: Programa A Cor da Bahia e Projeto S.A.M.BA., 1997. 51
O Carnaval já era uma verdadeira atração. Uma realidade
conseguida com muita luta e anos de esperança. Mas já se podia
enfim afirmar que o carnaval vencera definitivamente o Entrudo.99
A autora parece ter sido contagiada pelas notas dos jornais do período e
aponta, em seu texto, o entrudo como uma “infeliz herança de outros tempos”, um
“censurável costume” que o modelo civilizado de festejar, representado em seu
ápice pelo Carnaval dos clubes uniformizados de 1888, iria banir das ruas. Vianna
assume a causa do discurso elitista da época, que desejava enterrar a prática do
entrudo e ver triunfar o seu modelo dito civilizado de brincar o Carnaval.100
A Micarême aporta no Brasil como parte do projeto de civilização da festa.
Sua origem no Ocidente estaria ligada a uma tradição popular francesa do período
da quaresma. Momento em que populares realizavam a Queima de Judas e a
Serração da Velha com o fim de espantar a morte. 101
Nos primeiros anos do século XIX buscou-se uma inspiração européia para
introduzir no lugar da festa praticada por populares no sábado de Aleluia e assim
substituir uma festa ‘incivilizada’ por uma prática supostamente elegante, sofisticada
e adequada ao processo de ‘civilização’ experimentado pelo Brasil. Através da elite
brasileira seria introduzida a Micarême que seguia os preceitos dos carnavais de
Nice e Veneza. Nesse período buscava-se a matriz de identidade na Europa – uma
identidade supostamente avalizada pelo conceito abstrato de “civilização”. Essa
forma de festejar vigorou principalmente na capital baiana até a década de 1930. 102
As tensões e conflitos estão presentes nos domínios do carnaval há muito
tempo, talvez desde sempre. Como foi demonstrado nas linhas anteriores, existiram
alguns espaços em que a disputa se mostrou mais acirrada. Os conflitos são
desencadeados a partir da adesão do setor dominante a uma estética moderna
colocada como preferencial para o carnaval. O projeto de civilização da festa tentava
conter as manifestações populares, como o entrudo. Mas, as investidas das elites
enfrentavam resistências dos populares.
99 VIANNA, 1965, p.297.
100 VIANNA, 1965, p.285.
101 A serração da Velha é definida como uma “celebração grotesca que consiste (ainda hoje) em espantar a
morte. A inspiração da micareta está ligada à dramatização de uma velha (símbolo de morte, doença e desgraças)
que seria serrada entre gritos e uivos do público em geral.” SEBE, José C.. Carnaval, Carnavais. São
Paulo;Ática, 1986. p. 85.
102 SANTOS, Vanicléia Silva. Os ritos e os ritmos da micareta no Sertão da Bahia. Projeto História: Festas,
ritos e celebrações. Revista do Programa de Estudos Pós-graduados em História e do Departamento de História
da PUC-SP. São Paulo: EDUC, nº 28, Jan/Jun. 2004. 52
Em Santo Antônio de Jesus, as elites também adotam um modelo preferencial
de festejar composto pelas manifestações produzidas pelos seus representantes.
Apesar das constantes críticas às formas populares de festejar, não se configura
uma repressão violenta. As elites e os populares convivem no espaço da micareta.
Diversas manifestações compõem essa festa. Os sentidos de fazer parte
desse universo também são diferenciados. Para as elites a micareta possuía as
colorações da modernidade. Exibir os cordões bem organizados, bem vestidos e
repletos de novidades significava dar provas da modernização santantoniense –
tanto para a população da cidade quanto para os visitantes.
Se a micareta era considerada a rainha das festas em Santo Antônio, para os
setores dominantes era preciso ir além elevando a micareta ao posto de rainha das
festas em toda a região. Como foi exemplificado em outros momentos nesse texto,
pairava nesse período a necessidade de atrair visitantes e despertar a admiração
deles em relação à cidade e às festas – ambas, segundo a perspectiva das elites,
possuíam o aspecto de coisa moderna.
Foram incorporadas informações e imagens à festa a partir dos referenciais
dispostos no campo da cultura. Assim como a Europa fora a referência no processo
de “civilização da festa” brasileira, para cidades como Santo Antônio de Jesus o
referencial do Rio de Janeiro e, principalmente, Salvador constituíam-se em aportes
essenciais na configuração do festejo que ao seguir os modelos das capitais e
consequentemente o europeu, estariam elevando a urbe à categoria de polis
moderna, “civilizada” e progressista.
Entretanto, as festividades da micareta abrangem outras formas de ocupação
do reino de Momo e outros sentidos. Lugar de diversão, a festa era um momento de
expressar a criatividade levando para a folia os assuntos do cotidiano e da própria
vida dos participantes. Nesse espaço contava mais a alegria que a ordenação
segundo os moldes supostamente modernos, trazidos pelos cordões das elites.
Desde a gestação das idéias que – conduziriam às formas, notas e cores dos
cordões, pranchas, batucadas e Zé-pereiras, a micareta abria espaço na vida
citadina para estar presente nas expectativas, aptidões e aspirações dos
participantes da festa. A micareta adentrava na cidade e a cidade voltava suas
atenções para a realização da festa nos espaços públicos e privados.
As ruas, praças, clubes e os salões do sindicato fumagero, da Sociedade
Beneficente dos Artistas, do Clube Palmeirópolis e das filarmônicas, eram 53
preenchidos pelos grupos de foliões ocupados em exibir a criatividade, vivacidade e
as novidades que ornavam suas fantasias, máscaras e versos.
Na vida da cidade, a micareta possuía um lugar reservado. Suspensos o
trabalho, a rotina e os pensamentos relacionados à vivência e sobrevivência na
polis, a festa abria um espaço de exceção, desvinculado e ao mesmo tempo
integrado ao cotidiano citadino.
Dos passeios e varandas das casas situadas no centro e nas artérias em
crescimento, a população da cidade esperava ansiosa pelos desfiles dos cordões,
batucadas e pranchas. Acompanhavam as canções e também os grupos integrando
o cortejo que percorria as principais vias citadinas em direção aos bailes que
encerravam as comemorações.
A festa carnavalesca “[...] abre a porta do riso”103. O tempo festivo é o tempo
da diversão, que prolonga o tempo anterior, de espera, e acelera os dias de festa.
Ficava na espera[...] de semana a semana ia ouvino [sic] a música
no alto-falante, ia cantano [sic] os verso [pausa] até que a festa
chegava. Quem ia desfila e quem não ia, tava [sic] todo mundo na
rua. Era dança, cantoria o dia todo, nos três dia. A gente até queria
que ela ficasse, mas acabava. Teve ano de ser mais de uma vez. A
festa saia toda de novo. Era a segunda micareta. Era uma alegria[...].
Cabava [sic] a folia e aí só no outro ano.104
A expectativa e o contentamento provocados pelos dias festivos levaram a
micareta a se reapresentar em alguns anos. Os laços entre a festa momesca e seus
diversos participantes foram aprofundados ao longo das décadas de 30 e 40 do
século passado. Entre os versos, fantasias e máscaras a festa alcança 1950
marcada por um processo de desarticulação. Nos capítulos seguintes, vamos
aprofundar a nossa análise sobre a dinâmica da festa e de sua desarticulação.
103 O Paladio, Santo Antônio de Jesus, jan. de 1951, no 2.364, ano 50.
104 Cristina Ferreira,84 anos, feirante. Entrevista realizada em 26/10/2007. Santo Antônio de Jesus. 54
3 E AÍ A BRINCADEIRA COMEÇA
 Em abril de 1941 cordões de mascarados saem às ruas da Cidade das Flores
compondo o que se convencionou chamar de Micareta a partir de então. Entretanto,
esta prática festiva possui uma história anterior. Não se pode precisar deveras o
ponto inicial da festa – este enevoa-se nas décadas iniciais do século XX. Mas é
possível afirmar que por volta de 1915 o carnaval era uma festa consolidada, com
exibições de clubes pelas ruas da cidade. Pode datar desse mesmo período o gosto
dos santantonienses pela micareta.
Sob o título Micareme e depois seguindo a mudança para Micareta, já em
vigor em outras cidades e na capital baiana, a festa incendiava de alegria as ruas da
cidade. Sem negligenciar a dinâmica de mudança e permanência, a alteração dos
títulos ostentados pela festa nas ruas não influi radicalmente nos conteúdos da
mesma: sob uma perspectiva morfológica os cordões compostos pelos carros de
crítica ou de idéia – que levavam às ruas, críticas a acontecimentos e/ou a políticos
da cidade e região – fantasias e charangas seguem o mesmo ritmo em ambas,
desfilando na década de 20; aclamados em 30; experimentando o apogeu em 40 e o
esmorecer no início da década de 50.
Mas é isso mesmo, umas em cheio outras em vão ninguém é
culpado de não ter havido mais animação em nossa Micareta este
ano, o mal vem de longe: no Rio, a capital do carnaval brasileiro,
não houve animação este ano; na Bahia pela mesma forma, logo se
vê que não é somente entre nós. É o custo de vida e a falta de
trabalhos as únicas causas de tudo isso pois ninguém se sente
alegre com o bolso puro e desempregado. 105
A partir dos anos 1930 a realização da festa adquire notável destaque na vida
social da cidade, alcançando seu apogeu em 1945. A imprensa escrita ocupava-se
de preparar os foliões. Semanas antes da micareta notificava a chegada de Momo
com serpentinas e confetes literários a anunciar o riso, as piruetas e cantos de
Arlequins, Pierrôs e Colombinas. Batucadas de rapazes uniformizados, cordões de
senhorinhas ornadas por fantasias e máscaras e carros de crítica – que podiam
ostentar no espaço festivo os acontecimentos da política local –, alegravam a cidade
e constituíam a micareta do mês de abril.
105 A Micareta. O Detetive, Santo Antônio de Jesus, p. 01, 8 de abr. de 1951, nº. 188, ano 4.. 55
Quando em 1921 as Vivandeiras em Folia deixam sua cidade para exibir seu
cordão pelas ruas santantonienses, vem na eufórica expectativa de compor uma
folia consagrada pela alegria e vivacidade dos préstitos.
Está anunciado na vizinha cidade de Nazaré, para domingo de
Páscoa um passeio de recreio, destinado a esta cidade, promovido
pelo Batalhão das ‘Vivandeiras em Folia’. As Vivandeiras em Folia
trarão em sua companhia uma filarmônica. As festas da Mi-Carême,
como se vê, estão tomando incremento animador [...] 106
 Este trecho retirado do jornal não sugere apenas o aspecto temporal da festa:
os ritos da mi-carême aproximavam em tempo de festa, as cidades circunvizinhas.
As Vivandeiras em Folia que em 1921 se deslocam da terra nazarena compondo o
rito de carnavalizar as ruas nos desperta para o aspecto interativo da festa que não
estava restrita à urbe santantoniense.
 O Batalhão de moças organizado nas ruas de Nazaré tomam a estrada
enlevadas pelo som empolgante do festejo, adornadas por belas fantasias
confeccionadas especialmente para a ocasião e por máscaras que ocultavam seus
rostos joviais. A aproximação do espaço festivo despertava um encanto colorido e
num alarido febril seus versos eram recitados pelo caminho, fazendo exalar a paixão
pelo momento: a cada passo era possível sentir o gosto mais forte da festa que se
anunciava. Num misto de ansiedade, os corações palpitavam pela exibição
momesca que iriam realizar.
A micareta santantoniense suscitou muitas idas e vindas entre as cidades da
região. Muitos vieram trazendo seus trajes coloridos, com suas faces pintadas ou
encobertas por máscaras, agremiados ou não, em Batalhões, Cordões ou
Batucadas, com versos críticos ou rimas de amor.
Vinha gente de tudo que era cidade por aqui. Nazaré, Rio Fundo, do
Almeida, São Roque. Era gente que vinha ver a festa. A festa era
bonita demais. Micareta aqui era um luxo só.[...] as vezes vinha bloco
de fora pra [sic] participar da festa. Vinha organizado, cantano [sic]
as música de carnaval. [...]chegava o trem e descia aquele povo de
fantasia: era pirata, colombina, índio [...], mas bonito mesmo era as
moça [sic] nos cordão daqui.107
106 Mi-Carême. O Paladio,Santo Antônio de Jesus, 25 de fev. 1921, nº 937, ano 20.
107 Manoel dos Santos, 79 anos. Feirante. Entrevista realizada em 23/ 05/ 2006. Santo Antônio de Jesus. 56
Desfilavam grupos de Índios, Marujos, princesas e piratas, entoando versos,
agitando as ruas, colorindo as artérias, de calçamento asfáltico recente, com a
alegria da micareta.
Muitos retornaram ano após ano, inebriados pelo fervilhar da festa em
cordões de senhorinhas organizados e bem vestidos. Deixavam impressões, mas
também levavam consigo impressões de uma festa que a cada ano excedia em luxo
e recursos, conforme se pode constatar das diversas informações presentes nos
periódicos da época.
É possível conjeturar que este processo de contato, relacionamento e troca
no espaço da folia tenha se intensificado à medida que a festa alcançava uma
ressonância por toda a região. O Paladio, seu principal porta voz, pode ter
colaborado para essa difusão e interação, ao circular pelo centro da Bahia.108
Certamente o contato enriqueceu o espaço festivo santantoniense. Vários
passeios de grupos em direção à micareta são noticiados nos jornais da cidade. Por
outro lado as agremiações da cidade também se deslocam para outras localidades;
por vezes quase toda a festa é reencenada em alguma cidade vizinha e isso inclui
os músicos e as Filarmônicas Carlos Gomes e Amantes da Lyra.
Um grupo de senhorinhas em visita a nossa redação na última
quarta feira anunciou que no domingo próximo o blóco Jujú, que fez
uma apresentação ruidosa na última mi-careme, fará novamente
uma apresentação brilhante nas ruas de Nazaré. Acompanhando o
distinto grupo irá a Carlos Gomes.109
As filarmônicas da cidade têm grande participação nas festividades da
micareta. Seus músicos sempre estavam dispostos a acompanhar os cordões: “A
‘Carlos Gomes’ já está disposta a dividir as suas figuras[...] em três charangas,
somente para servir aos cordões que se preparam”110. Nos salões dessas
sociedades aconteciam animados bailes carnavalescos
A sociedade “Carlos Gomes” abriu os seus salões nas noites de
domingo e terça-feira, efetuando bailes em que reinou acentuado
prazer.
O comparecimento de senhorinhas e de cavalheiros foi lisonjeiro, e
nem podia deixar de assim ser, porquanto a banda santantoniense
tem raízes na estima da nossa mocidade vivaz.
108 Cf. VALADÃO, Hélio. Santo Antônio de Jesus, sua gente e suas origens. Santo Antônio de Jesus, 2005.
109 O Paladio, Santo Antônio de Jesus, p. 02, 16 de abr. 1936.
110 Micareta. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 27 de fev. de 1942, nº 2.039, ano 41. 57
Brincou-se muito na “Carlos Gomes” nas referidas duas noites
consagradas ás festas carnavalescas.111
A Micareta no arraial de São Roque em abril de 1936, por exemplo, contou
com a participação da Carlos Gomes e do Jazz Tupy, ambos de Santo Antônio de
Jesus. O último não era uma filarmônica, mas aparece nas festas de Momo
animando os grupos foliões com sua charanga.112
Em alguns anos a euforia era tamanha que os préstitos saiam pelas ruas
alguns dias após a realização da micareta, como em despedida do reinado de Momo
que se recolhia em saudosas memórias para retornar às ruas apenas no ano
seguinte.
Todos os cordões da mi-carême, formando um só préstito, farão uma
passeata triunfal no próximo domingo, depois de amanhã.
Fraternizados todos os grupos, num longo e bonito préstito
aviventado pelo som das charangas, vão dar ao público o seu adeus,
para só reaparecerem no ano vindouro.113
Desde o passeio das moças nazarenas até a grande micareta de 1945, a
festa atravessa momentos diversos e adversidades que se interpõem à sua
realização de acordo com o desejo da elite santantoniense, sequiosa pelo luxo, pelo
brilho e pela organização dos seus préstitos.
3.1 A fina flor e “os máscaras farroupilhas”
As senhorinhas santantonienses que levavam a efeito os festejos
carnavalescos conduziam a festa quase todos os anos: alguns nomes são caros na
direção da micareta. O que é raro são títulos de cordões se repetirem ano após ano.
Aparentemente as moças seguiam o gosto do momento para nomear seus cordões
e pranchas, recorrendo a diversos temas entre eles o amor e o progresso.
O referencial externo também se manifesta nos títulos escolhidos para os
cordões. Diversos anos as senhorinhas buscaram nos clubes carnavalescos
soteropolitanos a inspiração para nomear os seus cordões.
111 Os Bailes na Carlos Gomes. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 20 de fev. 1942, no
 2.038, ano 41.
112 Micarêta em S. Roque.O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 10 de abr. de 1936, nº 1.762, ano 35.
113 Uma boa nova. O Paladio, .Santo Antônio de Jesus, 01 de abr. de 1932. p. 2, , nº 1.567, ano 31. 58
Os desfiles da capital baiana motivavam as senhorinhas fornecendo idéias de
fantasias, músicas e títulos para compor a micareta que se destacava na cidade e
na região pela pompa e animação dos dias festivos.
Inocentes em Progresso e Fantoches são títulos que aparecem nessas
décadas, nos cordões e pranchas santantonienses. “O blóco Fantoches deu uma
nota galante para a nossa Micarêta. Constituído de belas senhorinhas, o grupo
animou as ruas com cantares e charangas.[...] Tudo foi de muito bom gosto.”114
Adotar títulos que faziam referência à capital baiana era parte da
representação da micareta como reduto do moderno. A fina flor santantoniense, se
empenhava todos os anos para levar ao público da cidade o brilho dos seus
cordões.
E quando as senhorinhas se empenham numa coisa, o efeito é certo,
o resultado é bom. Sereias do Atlântico – é um cordão já em
perspectiva. As moças que o estão organizando têm sangue na
gueira e farão coisa digna de ser vista. [...] A Micareta conseguiu
foros de rainha em Santo Antonio. Agora já não lhe é dado
retroceder, porque é esperada e desejada pelo povo.115
 O bom resultado pretendido pelas elites encontrava aporte nos cordões bem
organizados e bem vestidos, dignos de serem vistos nas ruas de Santo Antônio de
Jesus. Sob a perspectiva dos grupos dominantes, os cordões organizados pelas
senhorinhas constituíam a representação da ordem moderna que se tentava imprimir
à cidade. Essas manifestações são descritas como a legítima micareta, a “rainha em
Santo Antônio”.
O comércio tem uma marca forte na configuração dos cordões. Muitas lojas,
localizadas principalmente na Ruy Barbosa, colaboravam com a micareta doando
recursos, materiais, enfim, artigos para a organização da festa.
Pra enfeitar o cordão a gente vendia bilhete, [...] as vezes o prefeito
ajudava [...] arrecadava dinheiro na família mesmo [...] algumas lojas
ofereciam os enfeites. Lojas ali da Rui Barbosa [...] quando o cordão
desfilava sempre passava em frente as lojas.116
Essas lojas também ofereciam prêmios aos grupos que participavam da festa:
As 19 horas, todos os cordões reuniram-se diante á barbearia Cristal
para receber os seus premios, em brindes e dinheiro, oferecidos pela
114 A Micarêta esteve brilhante. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 19 de abr. 1940, no
1. 999 , ano 39.
115 A Micareta. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 20 de fev. 1942, no
2,038 , ano 41.
116 N. Santos, 78 anos. Professora. Entrevista realizada em 03/08/05. Santo Antônio de Jesus. 59
Loja Brasil e outras casas comerciais desta praça. Houve muitos
gritos, ovações, palmas.117
 Entre os cordões, era alimentado o desejo de ser a “[...] nota primorosa da
tarde carnavalesca”118. Não só pelos prêmios, mas pela aura de modernização que
cercava a festa.
Mas as ruas não estiveram entregues ás trevas. As senhorinhas que
são a fina flor da nossa sociedade, deram uma nota galante e
civilizadora, demonstrando para a massa desordenada uma festa
digna dos ares modernos que dominam nossa terra.119
 Ao cortejo carnavalesco das senhorinhas é atribuída a função de civilizar as
práticas, servindo de exemplo para a “massa desordenada” que festejava sem a
ordem e a elegância, tão caros ao olhar das elites.
No apoio da festa momesca, tem destaque as lojas Santo Antônio, Bahia e
Brasil. O comércio patrocinava muitos cordões, mas também era impulsionado com
a chegada dos dias de Momo. Nos jornais são anunciadas as novidades disponíveis
nas lojas da cidade para as festas da micareta.
Figura 06 – Anúncio da Loja das Estrelas.
Apesar da vontade, nem sempre os grupos adquiriam os artefatos para
compor os carros e fantasias nas lojas da capital. Muitos produtos eram comprados
no comércio local. As lojas buscavam as novidades em terras soteropolitanas, para
oferecer aos foliões santantonienses: “Chegou hoje na popular Loja Brasil completo
sortimento de fitas, máscaras, fantasias, conffetes, lança-perfumes [...] vindos dos
centros mais avançados [para] lançar beleza e elegância”120 nas festas da micareta.
117 A Micareta. O Detetive, Santo Antônio de Jesus, 8 de abr. de 1951, n 188, ano 4.
118 O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 28 de mar. de 1949.
119 Cordões primorosos!. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 25 de fev. de 1937.
120 Novidades. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 02 mar. 1945. 60
As lojas têm um papel importante no concurso que animava a micareta,
Oferecendo prêmios destinados não apenas ao desfile dos cordões. O concurso
agitando a vida das senhorinhas da cidade não ocorreu no Carnaval, mas na
micareta de 1950 tomando “[...] muito terreno [para ser] coroada de êxito”121. E mais
uma vez o patrocínio das lojas Santo Antônio, Bahia e Brasil parece ter predominado
no período, figurando com freqüência nos assuntos de Momo.
Figura 07 – Anúncio do concurso para Rainha e Princesas da micareta.
Figura 08 – Resultados da apuração do concurso para Rainha e Princesas da micareta.
 As senhorinhas responsáveis pelos cordões e pranchas, também
protagonizavam um concurso que acirrava a disputa pela primazia no folguedo
momesco. Todos os anos eram escolhidas uma rainha e princesas para compor
uma corte feminina no reinado da micareta. As cerimônias de premiação das eleitas
121 Micareta. O Detetive, Santo Antônio de Jesus, 12 de mar. de 1950, no
 135, ano 3. 61
contavam com bailes de máscaras nos salões da cidade, homenagens ao som do
momento e prêmios oferecidos pelas lojas.
Á noite coroação das rainhas e princesas da Micareta, discursando
alguns oradores, sendo as homenageadas, respectivamente
senhorinhas – Neide Gomes, Teresinha Laurine e Rita Murici. A
cerimônia da coroação, colocação de faixas, como da entrega dos
brindes, sob muitas palmas, foi realizada pelo Sr. Prefeito Municipal.
Orquestra deliciosa. Ótimo serviço de doces e gelados. Ja se vê que
a Micareta não passou assim, também, de búzio, como se esperava
[...] 122
Cercadas de pompas e circunstâncias, a eleição e premiação das escolhidas
para compor, durante a festa, a corte carnavalesca sobrevive até o início da década
de cinqüenta do século XX – período em que a realização da micareta nas ruas já
não apresenta o brilho e o dispêndio dos anos anteriores.
Não é apenas um acontecimento festivo que integra o calendário da micareta:
essas eleições possuem um teor político. Nos bailes de premiação as autoridades
compareciam com discursos e prêmios para as vencedoras. Apoiar as
comemorações da micareta era garantir bons elogios nas páginas do Paladio.
Foram apresentadas ontem, num primoroso e elegante baile, as
belas senhorinhas, candidatas a Rainha e princesas da Micareta de
1945. A audiência primorosamente trajada, era seleta [...] o Sr.
Prefeito esteve presente e num discurso belissimo, contagiou a todos
com o êxtase micaremico que se aproxima.123
O rei Momo também está presente na micareta e no carnaval, até mesmo em
momentos de resistência ao desaparecimento da festa carnavalesca nas ruas, como
podemos ver nesse panfleto distribuído semanas antes da festa e publicado na
edição de 5 de fevereiro de 1950 do jornal O Detetive.
122 A Mi-careta se apresentou como poude. O Detetive, Santo Antônio de Jesus, p. 01, 23 de abr. 1950, n
o
 141,
ano 3.
123 A Micareta se aproxima. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, p. 01, 25 de mar. de 1945, nº [ilegível], ano 44. 62
Figura 09 – Panfleto carnavalesco.
Os redatores do jornal elaboraram e imprimiram o panfleto para a distribuição
na cidade. Em protesto contra o retraimento das ruas nos três dias carnavalescos,
se empenham no movimento de agitar as ruas, conclamando os foliões para
participar do Grito do Carnaval.
Nesse momento de resistência ao decrescimento da festa, notamos a
presença do Rei Momo. Em alguns depoimentos sua participação é mencionada nas
manifestações encenadas no período da micareta.
[...] gostava do Zé-pereira. Ali a gente brincava. Não tinha confusão,
não tinha briga [...] Saia com o que tinha. Fantasia a gente usava
qualquer pano pra fazer [...] e tinha o Rei Momo. Era um posto de
respeito. Ia na frente do bando, fazendo pirueta e lavano [sic] a
folia.124
Sai de Momo um ano. No bloco pela rua [...] o povo todo foi seguino
[sic] de rua em rua [...] era moço quando sai de Momo. E tinha que
sê [sic] moço pra fazer tanta pirueta. Pulava aqui, pulava ali e o povo
rino [sic]. [...] tinha que ter jeito pra se [sic] Momo, não era só
fantasia.125
124 José Almerindo dos Santos, 78 anos.Aposentado. Entrevista realizada em 06/ 04/2005. Santo Antônio de
Jesus.
125 E. F. Soares, 82 anos. Aposentado. Entrevista realizada em 25/ 03/ 2008. 63
O Rei Momo parece ter uma presença marcante nos blocos populares. Entre
eles, o Zé-pereira, citado em outros depoimentos, tem na figura carnavalesca uma
liderança que abria a sua passagem pelas ruas da cidade. As manifestações do Zé-
pereira, compunham o espaço festivo santantoniense desfilando sobretudo durante
a madrugada. Grupos fantasiados, instrumentos diversos – até mesmo instrumentos
improvisados – faziam parte desse grupo.
Apesar da marcante presença momesca, as páginas do Paládio destacam
com mais ênfase a corte feminina composta pela fina flor da sociedade
santantoniese.
Rainhas e princesas eleitas entre as senhorinhas da elite pareciam
representar melhor os anseios de modernização das elites locais.
Não se podiam ver moças mais belas e bem trajadas que a Rainha e
princesas da Micareta. Delas emanava todo o requinte, toda a
elegancia, todo o brilho alvo de que necessitam as nossas ruas
nesses dias de festa.126[Grifo nosso]
Na memória de alguns entrevistados também encontramos imagens dessas
eleições:
A gente se divertia muito naquela época. Tinha já um grupo que saia
todo ano. Hoje eu não vou mais pra essas festas de rua, mas
naquela época a gente participava de todas. Tinha até eleição pra
escolher a rainha da micareta. Escolhia princesas também [...]
minhas irmãs e eu já participamos [...] Rita, Neide, era tanta gente.
Era uma turma boa [...] vendia bilhete no concurso também, não era
só beleza não [...] Neidinha foi até eleita um ano. Não lembro
quando foi [...] a gente ensaiava a música, a dança, encomendava
fantasia. [...] nos anos que a rainha escolhida era da nossa turma
era uma festa. A gente comemorava fazendo bonito no desfile. [...]
todo mundo queria exibir a rainha no cordão, mas primeiro ela
desfilava com a gente. [...] era bom. No baile a rainha era sempre o
centro: todo mundo olhava, queria ver a roupa, a coroa. Tinha que
se apresentar como mandava a ocasião. Não era de qualquer jeito
não. Tinha muita gente lá só pra ver a rainha.127
Uma corte feminina para as elites; um Rei Momo saltitante para os populares.
Parece haver uma separação que, todavia, não impede trocas entre os grupos. A
eleição de Rainhas e princesas pode não ser exclusividade das elites, assim como o
Rei Momo não era para os populares: “No baile do último dia de Carnaval esteve
126 Uma grande micareta. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, p. 02, 20 de mar. de 1940.
127 R. Muricy Santos,82 anos, aposentada. Entrevista realizada em 10/04/2005. Santo Antônio de Jesus. 64
presente vossa majestade, o Rei Momo, acompanhado pelas Rainha e princesas de
1937.”128
Diversos grupos estavam presentes e atuavam nesse espaço da micareta e
do carnaval. Para além dos anseios de modernização, organizavam seus desfiles e
brinquedos, dividindo as ruas da cidade: entre os cordões e pranchas das elites,
estavam as batucadas, os Zé-pereiras, os blocos e bandos populares.
Apesar de surgirem denominações diferentes para as manifestações
carnavalescas santantonienses, na prática elas se aproximam. Tanto nos
depoimentos quanto no jornal O Paladio, as Batucadas são associadas a desfiles de
grupos uniformizados. Os Blocos, por sua vez, eram compostos com fantasias
diversas, às vezes levavam pequenas alegorias ao som das charangas. Os bandos
são descritos como grupos de foliões que saiam pelas ruas da cidade compondo
desfiles próprios ou acompanhando outros cordões ou batucadas. Os Bandos estão
muito próximos do Zé-pereira, aparecendo em algumas fontes, como uma
prolongação da folia da madrugada.
Esses grupos se mantêm ativos participantes durante as micaretas apesar
dos setores elitistas não verem a presença dos “farroupilhas” com bons olhos.
Infelizmente no último dia consagrado ao Rei Momo, máscaras
farroupilhas arrastaram pelas ruas fantasias desasseiadas e sons
destoantes da nossa elegante e amada terra [...] Desde o romper da
madrugada as ruas estiveram dominadas pelos máscaras, fazendo
esgares, saracoteando em um entrudo sem controle.129
 Essas palavras, citadas acima, dão mostras do tom que assumia o discurso
modernizador na voz das elites. O “brilho alvo” dos cordões das senhorinhas se
apresentava como a redenção das ruas nos dias de festa momesca:
Mas as ruas não estiveram entregues ás trevas. A fina flor da nossa
sociedade deu uma nota galante e civilizadora, demonstrando para a
massa desordenada uma festa digna dos ares modernos que
dominam nossa terra.130
Nas páginas do Paladio os jornalistas construíram uma imagem da micareta
que atendia aos interesses das elites locais. Ao construir essa imagem da micareta
associada ao discurso modernizador, os jornalistas formataram uma memória: um
ponto de observação a partir do qual a festa pode ser lida segundo o olhar das
128 O Paladio, Santo Antônio de Jesus, p. 01, 28 de fev. 1937.
129 Uma grande micareta. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, p. 02, 20 de mar. de 1940.
130 Uma grande micareta. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, p. 02, 20 de mar. de 1940. 65
elites. Ou seja, a micareta pode ser lida como símbolo de modernidade. Mas, esta
não é a única leitura possível desse espaço dinâmico de comemoração. A festa
também era lugar de diversão, encontro, expressão de idéias e desejos, momento
de expressar a criatividade e de distensão das dificuldades do cotidiano.
Para os grupos populares, compostos por setores menos abastados, parecia
importar pouco as críticas e condenações veiculadas pelo Jornal.
A gente brincava, dançava. Saia de fantasia pela rua e levava o que
tinha pra fazer barulho, pra fazer o samba. E era assim que brincava
a micareta. Num tinha briga, num tinha confusão. Todo mundo ia pra
rua. Era batucada, marujada, samba [...] tinha as moça do cordão.
Era bonito de se vê. Quando a gente sabia que ia ter carro, ficava
todo mundo na espera. Avistava de longe, no comecinho da rua.
Vinha todo colorido, cheio de flor e de moça. Tudo de fantasia. [...]
era riso, era samba, era festa.131
Para as elites santantonienses o espaço da festa assume outras colorações.
Os cordões seriam, dentro desse discurso, o exemplo a ser seguido, a
representação do progresso na festa e a única manifestação legitima da
modernização da cidade: “Em algumas horas as nossas ruas estarão repletas de
cordões elegante e pranchas luxuosas. [...] teremos uma Micareta digna de nota [...]
enfim uma festa que expressa o gosto pelas coisas modernas.”132
Para o ideal de modernização, alcançar o luxo, a elegância é sempre
primordial:
Folgamos em noticiar que os preparativos para a próxima micareta
superam em muito os anos anteriores. As senhorinhas querem
abalar o publico que todos os anos vem assistir as ditas festas e
estão se empenhando na organização de cordões e pranchas
luxuosas, que prometem incendiar as ruas com o riso franco e
aberto, visto apenas na elegante Micareta de Santo Antonio.133
 Os cordões elitistas eram sinônimo de “civilização”, entretanto as camadas
populares que também ocupavam o espaço da folia carnavalesca utilizam os
mesmos conteúdos – cordões, fantasias e máscaras – nos dias de micareta. Talvez
a utilização de formas semelhantes tivesse como objetivo legitimar sua presença nas
ruas, já que os cordões eram sempre exaltados como símbolo de progresso. Mas, é
pouco provável que isso representasse uma estratégia consciente para todos os
131 E. F. Soares, 82 anos. Aposentado. Entrevista realizada em 25/ 03/ 2008. Santo Antônio de Jesus.
132 Chegou a hora. O Paladio, Santo Antônio de Jesus 16 de abr. de 1944.
133 Os preparativos são animadores. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 02 de abr. de 1945, p. 01, ano 44. 66
participantes dos grupos. O sentido da diversão é muito mais latente nas falas que
rememoram os dias de festa.
Tinha muita gente na festa, vinha gente de fora e gente daqui. Era
uma folia só. E a gente brincava até a madrugada, às vezes
começava mesmo era de madrugada [...] começava na rua, juntava
todo mundo, de fantasia, máscara, mas nem sempre tinha máscara...
de lata, de tudo que fazia barulho. A gente gostava de levar flor, as
mulheres... levava o cesto cheio de flor, eu levei um, a gente dava na
rua pra [sic] quem tava esperano [sic] a gente passar [...] ia até a
praça e cantava e brincava, jogava flor pra [sic] cima, era uma chuva
que enchia a rua de cor [pausa] era uma alegria só. Festa como
aquela não tem mais não.134
Além de cordões, batucadas e máscaras avulsos, os grupos que dispunham
de poucos recursos levavam para as ruas da cidade o famoso Zé-pereira que ficaria
conhecido como Club do Silêncio. Nos anos 30 do século XX, esse grupo muito
popular saía pelas ruas com instrumentos, fantasias e máscaras improvisadas,
acordando a cidade para o domínio que se iniciava, com sua batucada estridente.
Em finais de 30 e início de 40, período em que a fama, o dispêndio e o luxo
das micaretas crescem em apoteóticas apresentações, será fundado o Club do
Silêncio contando nas apresentações, com a adesão de representantes das elites
locais.135
Os indícios que apontam para a participação popular são encontrados nas
páginas que exaltam as manifestações da elite como únicas responsáveis pelos ares
modernizantes em dia de festa. Aparece em 1941 o seguinte relato:
[...] há várias combinações que se organizam para o belo folguedo.
Cordões talvez apareçam seis. Pranchas três ao certo. Afora os
grupos miúdos que, quando decentes e espirituosos, concorrem
muito para a alegria das ruas.”136
 Quaisquer que tenham sido os corpos a carregar fantasias, as vozes a entoar
o canto, cordões ricos ou pobres e grupos miúdos dividiram a cena nas micaretas
santantonienses.
Essas expressões lúdicas também são portadoras dos seus
protestos e reivindicações, indicando sua resistência frente às
134 Cristina Ferreira,84 anos, feirante. Entrevista realizada em 26/10/2007. Santo Antônio de Jesus.
135 Segundo o depoimento do senhor E. F. Soares as apresentações do Zé-pereira, conhecido a partir da década
de 1940 como Club do Silêncio, contava com a participação de alguns comerciantes da cidade. E. F. Soares, 82
anos. Aposentado. Entrevista realizada em 25/ 03/ 2008.
136 A Folia vem ahi. O Paladio. Santo Antônio de Jesus, 20 de mar. 1941, . nº. 1.995, ano 40. 67
condições impostas, tais como as normatizações e proibições às
manifestações lúdicas. Porém, não devemos esquecer as
contradições presentes nas manifestações populares, como a
adoção de elementos brancos nos préstitos organizados por afrobrasileiros, verificados nos desfiles dos clubes uniformizados.137
Nas décadas de 30 e 40 é predominante a participação feminina na micareta
– essa é uma questão de proporção e não exclusão, os homens participam, no
entanto a presença feminina é superior. Nas páginas do jornal são sempre as
“senhoritas da elite [que] preparam cordões primorosos e estão interessadas
vivamente pelo brilho desse festejo da páscoa. Carros de crítica e de realce
organizam as suas exibições alegres e gritantes.”138
No mês de abril, quando a micareta ocupava as ruas da cidade, os cordões
de senhorinhas fantasiadas acompanhados pela percussão das charangas, dividiam
o espaço das Quatro Esquinas – e outras ruas – com os “caretas farroupilhas”,
“máscaras desasseiados”139 e tambores feitos em casa, como nos aponta a memória
de Augusto Soares140 morador da cidade de Santo Antônio de Jesus.
A narrativa jornalística nos remete a uma experiência festiva nas ruas da
cidade, que não está centrada apenas nas elites locais:
A não ser nos grupos e barulhos do Zé Pereira, nas duas
madrugadas de 27 e 29, poucos caretas farroupilhas se encontravam
nas ruas nas duas tardes da mi-carême.
Os máscaras desasseiados se retraíram nessas tardes para dar
campo aberto e franco aos cordões limpos, bem organizados e bem
vestidos, com as suas charangas estridentes. 141[Grifos nossos]
 As narrativas da micareta no jornal O Paladio expõem com freqüência essa
oposição: “máscaras desasseiados” versus “cordões limpos”. Os indivíduos que
envergavam tais máscaras não correspondiam às senhorinhas da elite; em oposição
à imagem de “caretas farroupilhas” é apresentada – e insistentemente ressaltada em
outros números do jornal – a imagem de “[...] cordões limpos, bem organizados e
bem vestidos”, em suma, cordões que se enquadravam à imagem que o próprio
Paladio tentava instituir: a imagem de uma cidade moderna, urbana e progressista
que não assistia satisfeita ao desfile dos caretas farroupilhas. Esse afã
137 VIEIRA FILHO, Raphael Rodrigues. Diversidade no carnaval de Salvador – as manifestações afrobrasileiras (1876-1930). In: Projeto História, São Paulo, (14), fevereiro de 1997. p. 218.
138 A Micarême está prestes. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, p.01, 17 de mar. de 1939. nº 1.908, ano 38.
139 A Mi-carême. O Paladio. Santo Antônio de Jesus, p. 03, 1º de abr. de 1932, nº. 1.567, ano 31.
140 Augusto Soares da Silva, 87 anos. Feirante. Entrevista realizada em 13/12/2005
141 A Mi-carême. O Paladio. Santo Antônio de Jesus, p. 03, 1º de abr. de 1932, nº. 1.567, ano 31. 68
modernizador profetizado nas décadas de 1930 e 1940 enfrentará o arrefecimento
da Micareta dos cordões de senhorinhas e patrícias na década seguinte.
Em 1951 identificamos um movimento das senhorinhas e cavalheiros,
angariando donativos para levar a efeito os festejos da micareta, incomparável com
a “[...] luxuosa e dispendiosa micareta de 1945”142. A presença masculina nos
preparativos da micareta parece ser mais freqüente a partir de então.
Senhorinhas, meninas e rapazes se empenharam para levar às ruas a alegria
carnavalesca. Assim, neste ano foi organizado “um grupo carnavalesco infantil”, as
“Princesas Infantis, que ao som de esplendida charanga, percorrerá a cidade [...] o
traje, apesar de não ser rico, é original e está irradiante de elegância e arte, e
estamos certos, muito agradará ao público.” 143
A micareta em 1950 não esteve dotada com a pompa e os atrativos dos anos
anteriores, mas esteve nas ruas:
Não tivemos batucadas, nem cordões ricos nem pobres, nem
pranchas alegóricas, pois que tudo isto é luxo, entretanto os nossos
moços mesmo assim não deixaram de vibrar dando lugares ao bom
humor, soprando nos instrumentos, ou entoando em plena rua
canções carnavalescas[...] Lança-perfumes, ventarolas e confetes
não faltaram nos três dias coloridos e o local das quatro esquinas,
que é sempre o ponto central nas festas desse gênero, exibia seleta
e numerosa assistência, com extraordinário serviço de alto-falante,
dando banhos de trovoada nos ouvidos de todo mundo, talvez para
que o povo acordasse do sono em que vive mergulhado com
referência às festas pagãs.144
 A passagem confronta o luxo das pranchas alegóricas, dos cordões com o
arrefecimento dos festejos momescos que são levados às ruas, no entanto sem o
brilho da grande micareta de 1945. Outra questão evidente é a menção feita ao povo
nas últimas linhas. De forma menos incisiva que nos relatos d’O Paladio, o papel do
povo é afirmado mais uma vez; o sono, ou os braços de Morfeu estariam
distanciando o povo dos festejos de Momo. Entretanto, há ainda uma questão que
poderia escapar do leitor desatento.
 Na primeira linha da citação encontra-se mais um indício importante e
imprescindível para a análise da festa. Numa leitura superficial das narrativas
jornalísticas tem-se a falsa noção de que a elite e tão somente ela era responsável
142 Micareta. O Detetive, Santo Antônio de Jesus, 18 de fev. 1951, nº 181. ano 4.
143 Micareta. O Detetive, Santo Antônio de Jesus, 02 de abr. 1950, nº. 138. ano 3.
144 A Mi-careta se apresentou como poude. O Detetive, Santo Antônio de Jesus, 23 de abr. 1950, nº. 141. ano 3. 69
pelas festas da micareta nas décadas de 1930 e 1940, mas o mesmo texto que
ressalta a elite fornece indícios da atuação de outros setores da sociedade.
 A festa que encanta e alucina a população santantoniense em fins de 40 e
inicio da década de 50 do século passado, começa a arrefecer provocando reações
contra o retraimento do reinado de momo nas ruas da cidade.
Cordões e pranchas alegóricas retraem suas apresentações na Quatro
Esquinas, mas não desaparecem por completo de uma hora para outra. Aparecem
em destaque nesse período a realização de bailes e matinees nos clubes, sedes das
filarmônicas, sindicato fumagero e na Sociedade dos Artistas. Espaços restritos que
limitavam também os participantes.
Em 1950 O Detetive anuncia o “Grito do Carnaval” a ser realizado na Praça
Padre Mateus com o patrocínio de três importantes lojas da cidade. A nota
congratula os “incansáveis e entusiastas foliões” pela iniciativa de não legar às ruas,
nos três dias de carnaval, o marasmo dos anos anteriores.
Em 25 de fevereiro do mesmo ano O Detetive traz em sua primeira página
uma nota intitulada “O carnaval... nos braços de Morfeu!”, com uma descrição de um
carnaval que certamente não aconteceu naquele ano, mas é ressonância dos
carnavais áureos da cidade. Analisemos o trecho a seguir:
Movimento desusado nas quatro esquinas. As serpentinas
formavam momentaneamente uma espécie de arcos de triunfo e
redes policrômicas. Os confetes infestavam o ar como pequeninas
hóstias multicores, atapetando o solo, lembrando
extravagantemente o maná dos desertos bíblicos...[sic] O jato de
éter dos lança-perfumes, as pranchas imponentes, as criticas
espirituosas, os grupos, os cordões, a orquestra, as canções
carnavalescas palmilhando as nossas ruas, em passo cadenciado e
rítmico, em saltitantes requebrados ou descrevendo caracóis
artisticos, em bailados encantadores [...]145
 A ironia das primeiras linhas serve de contraponto à situação dos festejos de
momo no início da década de 50. Nas Quatro Esquinas, local da festa, havia
ocorrido alguma vibração, mas em relação às festas anteriores, a realização seria
um “[...] apagadíssimo arremedo, um pequenino ensaio”146. Questiona-se onde
estariam os cordões, as críticas, as batucadas... e os promotores da festa, Avelino,
Regis, Lino, Madeira e as patrícias com o concurso e os números inteligentes. Onde
estaria Momo? E conclui: nos braços de Morfeu!
145 O Carnaval...nos braços de Morfeu!. O detetive. Santo Antônio de Jesus, 25 fev. 1950, nº. 133. Ano 3.
146 O Carnaval...nos braços de Morfeu!. O Detetive. Santo Antônio de Jesus, 25 fev. 1950, nº. 133. Ano 3. 70
 Na compreensão da festa é preciso considerar que os centros espaciais da
festa nem sempre coincidem com os espaços de poder. Muitos momentos ao longo
da história comprovam a veracidade de tal assertiva. A festa carnavalesca em Santo
Antônio de Jesus assim é configurada: a elite que se apresenta como a fina flor
representante dos ares progressistas através da realização da micareta,
espacialmente não reside no centro, fazendo uso desse espaço nos desfiles. Seus
préstitos são arquitetados nas regiões periféricas da cidade, nas fazendas das
famílias abastadas para acontecerem no centro, lugar de maior afluência de público
para suas apresentações.
O centro nesse período, ainda marcado pela presença do Mercado Municipal
na Praça Luiz Vianna, era lugar de comércio e sociabilidades: lugar em que cidades
da região se encontravam em prosas, amizades e parcerias econômicas e
festivas.147
Entre o fazer da barba – o jornal O Detetive destaca o nome de Avelino
Santos, barbeiro, como importante articulador da festa nos últimos anos da década
de 40 e inicio da década de cinqüenta – e a venda de produtos, muitas batucadas
foram pensadas para o período que se abria em oportunidades de cantar, saltitar, rir
e provocar, no público que acompanhava o cortejo da folia, muitas risadas.148
Trabalho a muito tempo aqui na feira, mas ela não ficava aqui onde
ta hoje. Era lá na praça, na frente da igreja [...] trabalho desde o
tempo das batucada, da marujada que a gente gostava muito de
brincar [...] saia tudo na micareta. Teve um ano que junto o povo que
trabalhava na vendagem da feira pra fazer uma folia, uma batucada
[...] e organizava como podia, porque todo mundo precisava
trabalhar. Ali no meio do povo a gente cantava que era pra não
perder a melodia. 149
Segundo o depoimento de Augusto Soares, ativo participante das batucadas
e feirante desde a década de 50 do século passado, vários participantes das
batucadas eram feirantes ou desempenhavam outras profissões em ruas próximas
ao mercado municipal, sendo que este se convertia também em local de encontro
para acertar detalhes das batucadas.
Na festa estava presente a vida citadina e era espaço aberto para os foliões
aliviarem as tensões cotidianas através da diversão. Mas, um espaço também de
147 SANTANA, Charles d’Almeida. Dimensão Histórico Cultural “ Cidades do recôncavo”. Programa de
Desenvolvimento regional Sustentável. Recôncavo Sul. CAR. Salvador Abril de 1999.
148 Micareta. O Detetive, Santo Antônio de Jesus, 18 de fev. 1951, nº 181, ano 4.
149 Augusto Soares da Silva, 87 anos. Feirante. Entrevista realizada em 13/12/2005. Santo Antonio de Jesus. 71
potencial subversivo, aberto para as críticas sempre marcantes na micareta. E nas
entrelinhas desse espaço, a tensão entre cordões de luxo, que se apresentavam
como legítimos representantes da modernização, e cordões “farroupilhas”, que a voz
da elite queria banir com seu grito de progresso, mas que não retrocediam o seu
desfile exibindo seus trajes e sua alegria na cidade, fazendo das ruas seu espaço.
3.2 NAS ARTÉRIAS DA CIDADE
Mas onde e quando repousar, refletir, na ‘polis’ moderna,
que até a nossa está sendo, inferno da atividade
humana, que se eletriza, cinemiza, automobiliza e mal
pode ter um aí!, para o que for esmagado, fulminado à
pressão assassina ou inocente das rodas, dos
pneumáticos e das concorrências econômicas? Dentro
do tempo; nas vagas do tempo, com a bússola da
experiência, teremos norteio quotidiano.
[...] os cronômetros não contam senão segundos de
ambição, de sensações novíssimas, de interesses e
refinamentos.
[...]
Ao tempo em que escrevo estas linhas, já aí está a
urgência suarenta do tipógrafo a espiá-las e ouço a
trepidação do maquinismo impressor, a que estou
associando a ânsia dos leitores no nosso órgão, que é o
do seu momento social, da hora que soa.
(KILKERRY, Pedro, 1913, p. 147-148)
Selecionadas e repetidas essas são as notas ressonantes do discurso em
voga desde as últimas décadas do século XIX na sociedade brasileira: urbanização,
modernidade, civilização, progresso. O discurso adentra o século XX difuso por
todos os meios, instrumentos e imagens. Eis a alegoria captada na leitura dos
jornais: Santo Antônio de Jesus aspirante à categoria de “civilizada” ansiava uma
atmosfera em que as idéias de progresso demarcassem o caminho a percorrer na
construção de uma cidade moderna e logo uma vida moderna.
A cidade vibrava, fervilhava em suas artérias modernizantes e a realização da
micareta era vista como um meio de legitimar sua modernização ao aderir às formas
de festejar da capital do país e da Bahia.
Esse lugar de comemoração agregava os citadinos: os corpos se
encontravam com fantasias e máscaras, comunicando alegria, idéias, exibindo o
poder em preparar desfiles repletos de luxo e novidades trazidas da capital para
despertar os elogios do público e dos visitantes. 72
No ritmo das músicas, cantando os versos compostos especialmente para a
ocasião, ou importados do Rio de Janeiro ou Salvador, os participantes integravam o
movimento da festa. Nesse espaço de comemoração estão refletidas as vivências
dos participantes e da sociedade santantoniense.
Ostentando as novidades, a festa se inseria na cidade em processo de
urbanização. Ao lado dos projetos idealizados para a estrutura da cidade, estava a
festa, colocada como símbolo da modernização em desenvolvimento.
Foram incorporadas informações e imagens à festa santantoniense a partir
dos referenciais dispostos no campo da cultura nacional. Assim como a Europa fora
a referência no processo de “civilização da festa” brasileira, para cidades como
Santo Antônio de Jesus o referencial do Carnaval do Rio de Janeiro e Salvador
constituíam-se em aportes essenciais na configuração dos festejos de carnaval e
micareta que, ao seguir os modelos das capitais e consequentemente o europeu,
estariam elevando a urbe à categoria de polis moderna, “civilizada” e progressista.
Há muito tempo que esta terra da provas do seu progresso [...]
nossas ruas e construções assumem uma bonita feição. [...] os
desfiles farfalhantes levados a efeito pelas senhorinhas da elite são
um adorno de ordem e modernidade [...] não é em outro lugar, se
não nos centros mais avançados que a nossa fina flor vai colher as
luzes de inspiração para compor a festa que é a rainha em toda a
região.150
 As elites observam outros espaços festivos para formatar uma festa que,
segundo o seu ponto de vista, assumia o papel de referência entre as cidades que
circundavam Santo Antônio de Jesus. A intenção não era apenas assimilar
elementos externos que pudessem representar a modernidade, mas se colocar
como paradigma moderno em sua região.
 A associação da festa carnavalesca à nação é amplamente manipulada nesse
contexto de 30 e 40:
Do senso comum à produção acadêmica, passando pela literatura,
relatos de época e de viajantes estrangeiros, é forte a tendência de
se considerar a festa, no Brasil, mais costumeiramente a festa
carnavalesca, como o local de encontro, mistura e comunhão entre
todas as etnias e classes sociais, base importante do que seria a
marca singular e positiva de uma pretensa nacionalidade brasileira.151
150 O Paladio, Santo Antônio de Jesus, p. 01, 20 de abr. 1943.
151 ABREU, Martha. Festas e cultura popular na formação do “povo brasileiro”. In: Projeto Historia, São Paulo,
n.16, fevereiro de 1998. p. 143. 73
Segundo Maria Clementina Cunha historicamente foi atribuída à festa a
capacidade de expressão de uma originalidade e de esboço do perfil “daquilo que
faz os brasileiros diferentes”. Esta idéia proclamada e reiterada antes e depois da
virada para o século XX tem como argumento a idéia de que o carnaval incorpora a
essência do nosso sangue.152
A partir da década de 1920, este pensamento será sistematicamente
elaborado e revestido de colorações políticas. Dessa forma, a constante presença
do termo “povo” nos jornais publicados em Santo Antônio de Jesus, nos faz pensar
não apenas na existência de um projeto político voltado a cooptar o apoio popular;
instituía-se a tendência de interpretar a expressão festiva do “povo” como a essência
fundadora da identidade do país. E esta servia àquele. 153
À medida que o Estado Novo institui um discurso de aproximação entre
governo e “povo”, este termo passa a figurar com freqüência nos meios de
comunicação. No que tange à festa santantoniense, nos meios de comunicação
locais, principalmente no jornal O Paládio, constrói-se uma imagem das festas
Momescas associada a uma forte presença popular.
“Carnaval é a festa do povo. Onde não há povo não pode haver carnaval”
 154
.
Atribui-se deveras um valor quase inestimável ao povo na configuração das festas
de abril, entretanto esse povo cantado nas linhas de diversos exemplares do Paladio
não aparenta referir-se às camadas populares – ou menos abastadas da sociedade.
A pompa e o brilhantismo do festejo são sempre atribuídos às senhorinhas da elite.
As elites queriam o povo apenas como público do espetáculo protagonizado
pelas senhorinhas. Elas utilizavam a Micareta como meio pedagógico para tentar
transformar o gosto do povo para coisas mais refinadas e ao gosto dos padrões que
as próprias elites estabeleciam como aceitáveis para uma cidade moderna.
Uma outra relação emerge nesse processo. As semanas dedicadas à
preparação das fantasias, coreografias e carros, eram compensadas quando o
sucesso se manifestava nos aplausos, na admiração e na adesão dos expectadores,
“da massa popular” como costuma acentuar o jornal O Paladio. Tudo era pensado,
152 CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia: uma História Social do Carnaval carioca entre 1880 e
1920. São Paulo: Cia. das Letras, 2001, p. 13.
153 CUNHA, 2001.
154 O Carnaval. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 21 de fev.1943, ano 42. 74
composto e organizado, “[...] pra abalar o público. A gente gostava de fazer o povo
rir [...] as danças e os versos eram o encanto da festa.”155
Para as elites, enquanto os seus cordões desfilavam farfalhantes, exibindo
fantasias luxuosas e canções animadas, ao povo cabia assistir “atento e prazeroso”
ao cortejo das senhorinhas que eram a fina flor da sociedade santantoniense.156
Representante dos anseios da elite, o jornal O Paladio, nos exemplares
publicados quinzenalmente entre os anos de 1930 e 1949, cria a imagem de uma
Micareta como símbolo da modernidade santantoniense. Neste discurso de
construção da Micareta como elemento legitimador do progresso e da modernização
haveria espaço apenas para as “senhorinhas da elite”. Isso, é claro, não torna
extinta a construção festiva nos arrabaldes da cidade.
 Na cultura protagonizada pelas transformações o homem legitima e oferece
os padrões para a ação no meio social. Para tanto retira dos costumes no seio da
sociedade o substrato essencial que legitima sua atuação. Desse modo, rito, festa,
canto e dança, trabalho e riso, encontram-se entrelaçados na esfera de instituição
social, na qual o homem efetiva a criação do seu mundo, enredando a si na mesma
construção.157
 Nessa linha, segundo Vanicléia S. Santos:
[...] o Carnaval, institucionalizado nos anos 30, representava uma
idéia de nacionalidade que se criava através da união e da
homogeneidade das raças. No entanto, organizado e obedecendo às
normas para que fosse realizado. A festa não era mais realizada pelo
povo, mas para o povo.158
 Os elementos que apontam a uma transição para o espetáculo, da festa
distanciada das vias de produção populares ligadas a sua origem entrudesca no
Brasil, confrontam-se nas ruas de atuação social com a resistência ao “modelo
importado de Micareta, enquanto festa urbana, ‘civilizada’ [...]”159
.
 A cidade das Flores exalava a memória do fervilhar com a chegada dos trens,
respirava os ares da modernidade com o Projeto Luz e Força que proporcionou a
155 Neide Santos, 87 anos, professora. Entrevista realizada em 03/04/2008. Santo Antônio de Jesus.
156 A Micareta. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 22 de abr.1942, no
2.045, ano 41.
157 Sobre ‘instituição social’ ver CASTORIADIS, Cornelius. O imaginário: a criação no domínio socialhistórico. In: _________Encruzilhadas do Labirinto II: Domínios do Homem. Rio de Janeiro; Paz e Terra,
1987.
158 SANTOS, Vanicléia Silva. Os ritos e os ritmos da micareta no Sertão da Bahia. Projeto História: Festas,
ritos e celebrações. Revista do Programa de Estudos Pós-graduados em História e do Departamento de História
da PUC-SP. São Paulo: EDUC, nº 28, Jan/Jun. 2004, p. 252.
159 SANTOS, V., 2004, p. 252. 75
eletricidade. A reconfiguração do espaço citadino, a urbanização e higienização
chegados ao recôncavo baiano de um Brasil espartilhado à francesa, concorrem no
processo de reconfiguração do festejo que tomava as ruas da cidade no mês de
abril:
A aproximação dos dias de Momo jamais deixou de trazer ao povo a
alacridade que exalta e rejuvenesce... porquanto a alegria é um dos
agentes mais firmes e efficientes da vida [...] Sem ela – a festa –,
teria um grande desenvolvimento a escola sombria dos misantropos,
dos scepticos, dos descrentes, e em vez da sociedade vivaz,
confortadora e vibrátil dos dias que passam, teríamos o infortúnio de
ver um conjunto indesejável de tíbios, sonolentos, taciturnos,
povoando terras fadadas para crear verdejante a árvore do bello e
dos prazeres. 160
 Mais que palavras rebuscadas exaltando o papel dos festejos de Momo na
sociedade enquanto “um lenitivo às durezas constantes da [...] vida” 161, o trecho é
parte de um quadro; uma tela pintada ao longo das décadas de trinta e quarenta da
Micareta entusiasta, da alegria eufórica dos cordões das “senhorinhas”, da
Micarême dos carros de crítica e dos “grupos miúdos”.
 Como afirma Bakhtin, criava-se um segundo mundo baseado no princípio do
riso no qual “[...] a festa convertia-se na forma de que se revestia a segunda vida do
povo, o qual penetrava temporariamente no reino utópico da universalidade,
liberdade, igualdade e abundância.”162
Era assim uma espécie de liberação mesmo que temporária da verdade
dominante, de abolição das relações hierárquicas, privilégios e regras: espaço no
qual a própria vida e as dificuldades do trabalho e do cotidiano se tornavam risíveis.
A vida também não era fácil não. Trabalhava de sol a sol, levava o
cesto pra feira dia de sábado, e vinha gente de todo lugar [...] mas
tinha mais sossego, hoje em dia é só bandalera[...] a gente
trabalhava mais feliz quando tava chegano a festa, a micareta. Se
reunia de noitinha pra cantar as música que era pra fica bonito na
rua. E ai se ria de tudo, do trabalho, da vida, das noite de farra que a
gente ficava tomano a branquinha. O Lino é que gostava [...] e era no
improviso que saia as canção.163
160 O Reino de Momo. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 21 fev. 1936,, nº 1.756, ano 35.
161 Micareta. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 20 de Mar. 1941, , nº 1.995, ano 40.
162 BAKHTIN, Mikhail M. Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François
Rabelais. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1993. p. 8.
163 Augusto Soares da Silva, 87 anos. Feirante. Entrevista realizada em 13/12/2005. Santo Antônio de Jesus. 76
 Os assuntos do dia a dia eram temas para a composição de canções que
animavam os dias anteriores e a própria micareta. O trabalho na feira, as
dificuldades e alegrias da vida adentravam no reino de Momo.
É nesse campo de decoração e ensaio de modelos urbanos e modernos, de
apropriação e reelaboração de formas de festejar, que o corpo citadino retempera
sua alma. Ainda que o sentido de válvula de escape seja limitado, o espaço no qual
a vida e a dor se tornam risíveis, nos minutos fugazes de piruetas, confetes e críticas
permitem ao homem arrefecer sua pobre existência na polis que se moderniza.
 A narrativa jornalística do período estudado prima em reclamar uma
transformação da estética citadina:
Entre as coisas que o momento reclama como necessárias aqui na
cidade, está sem contestação alguma um mercado publico. O antigo,
da Praça Luiz Viana é um pardieiro já condenado pela época, pelo
modernismo, pela marcha progressiva das coisas de serventia
publica. Não só é de dimensões acanhadas, não permitindo todo o
serviço ali dentro nos dias de feira, como é, ainda um prédio que
afeia a praça em questão, desfigurando-a de modo incontestável.
[...]
Um mercado com aspecto de coisa moderna é o que visamos ao
escrever estas linhas sobre assuntos urbanos. Um mercado que, por
sua construção, dimensões, divisões, ventilação e higiene, desperte
apreciação lisonjeira dos que nos visitam, dos que procuram aos
sábados o ponto em que se faz entre nós a vendagem de todas as
especiarias, cereaes e gêneros de primeira necessidade. 164[Grifo
nosso]
 A nota evidencia não apenas a presença do elemento moderno; marcada pelo
ideal de modernidade enquanto progresso, aponta para um dos significados do ser
moderno em Santo Antônio de Jesus: a organização do espaço citadino. E nada
melhor para transmitir as idéias de modernidade a uma cidade comercial que seu
mercado. A modernidade é assim estabelecida na dicotomia entre “[...] um pardieiro
[...] que afeia a praça [e um] aspecto de coisa moderna [...]” – implicitamente
associado a organização e limpeza.
 A ordenação do espaço urbano, o desejo de imprimir na cidade um “[...]
aspecto de coisa moderna [...]” são colocados como necessários, não apenas para
os olhares santantonienses; era preciso impressionar o visitante com a
modernização, despertar a “apreciação lisonjeira” daqueles que procuravam a
cidade, seja em dia de feira ou nos dias de festa.
164 Mercado Municipal. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 3 de fev. de 1949 , nº 2.301, ano 48. 77
Consignamos pois esta auspiciosa noticia, levando ao povo os
nossos parabéns pela era de eletricidade, no despontar feliz de seus
raios brilhantes, trazendo aos santantonienses um complexo de
grandezas para maior conforto dos nossos labores, elegância das
nossas ruas e maiores possibilidades à industria, ao comercio desta
gleba tão justamente elogiada por quantos a visitam.
165
Ordenação, elegância, grandeza são palavras caras no discurso elaborado
pelos jornalistas d’O Paladio. Nas páginas envelhecidas do jornal ainda se pode
notar “os raios brilhantes” iluminando a “marcha progressiva” tão desejada e pouco
alcançada.
 Essas idéias são transpostas ao universo festivo:
[...] a gente ia comprar tecido, fita, tudo pra enfeitar. Quando alguém
ia na capital, a gente aproveitava pra comprar os enfeites, adereços
[...] sempre tinha novidade, tecidos coloridos, confetes, máscaras [...]
aí quando o cordão saia, desfilava cheio de brilho, garboso[...] todo
mundo gostava e elogiava a nossa elegância. A gente sempre queria
que tudo seguisse na ordem e ensaiava muito pra não errar nem
uma vez.166
 No contexto da festa, de acordo com o olhar das elites, cabia sempre aos
cordões produzidos pelas senhorinhas da elite a associação à limpeza, organização
e consequentemente modernidade. Enquanto o “pardieiro já condenado [...] pelo
modernismo” tem paralelo nos “máscaras desasseiados” e indesejados pelo
discurso modernista propagado através da voz do jornal O Paladio. A análise da
festa é, aqui, indissociável da análise da cidade.
 As preocupações com as questões econômicas e o modo de vida do citadino,
com a forma urbana e sua organização social, com a representação e o imaginário,
as relações entre o público e o privado, emergem na primeira metade do século XX.
Os estudos sobre a cidade para muito além da análise das bases institucionais,
tenta, a partir desse momento, apreender a riqueza e a especificidade do viver
urbano.167
 O fim do século põe em pauta a perspectiva de pensar o social através de
suas representações e isso marca definitivamente as análises da nova história
cultural. Mas assumir essa postura implica levar em consideração que a
165 A luz – Nova era de progresso. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 21 de mar. de 1949 , nº 2.305, ano 48.
166 Neide Santos, 87 anos, professora. Entrevista realizada em 03/04/2008. Santo Antônio de Jesus.
167 BARROS, José D’Ássunção. Cidade e História. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2007. 78
representação pressupõe uma ausência à medida que o que representa se
diferencia do que é representado.
 Em contraponto há a afirmação de uma presença “[...] daquilo que se expõe
no lugar do outro”168. Nessa relação ambígua de presença e ausência constituem-se
os sentidos que, segundo Sandra Pesavento, devem ser atingidos pelo historiador.
 Estudos que resgatam a cidade através das suas representações foram
desenvolvidos por diversos autores. Entre eles, Pesavento constrói um trabalho
singular. A Porto Alegre dos anos 30 é analisada em um de seus artigos que elucida
as representações simbólicas da urbe e estas podem, ou não, corresponder com a
realidade. Assim como muitas cidades brasileiras, Porto Alegre convivia com o ideal
de acompanhar a modernização.
 As transformações empreendidas no espaço citadino suscitavam percepções,
sensações e representações.
[...] As largas avenidas, os viadutos ou o saneamento urbano, com a
‘varrida dos pobres’ do centro da cidade, eram práticas sociais
ligadas ao conceito da cidade moderna e da civilização [eram
símbolos das] exigências morais, higiênicas e estéticas imperiosas
[que] se impunham diante da necessidade de ‘ser’ e ‘parecer’
moderno.169
A autora levanta uma questão importante para o estudo das cidades que
atravessam esse processo: a modernidade não se realiza com a mesma intensidade
em todos os espaços e nem toda modernização leva as cidades à condição de
metrópole. Santo Antônio de Jesus que, no período, é anunciada no Paladio como
uma cidade nos trilhos da modernização, pode ser referida como exemplo desse
processo.
 É certo que as acanhadas transformações do espaço citadino santantoniense
nas décadas de 1930 e 1940 não a fizeram metrópole, todavia, o canto renitente nas
folhas amareladas e envelhecidas do Paladio são representações da modernidade
desejada. As pequenas mudanças e reformas alimentavam o anseio de modernizar
profundamente a cidade de Santo Antonio de Jesus. Em suma:
[...] há a projeção de uma ‘cidade que se quer’, imaginada e
desejada, sobre a cidade que se tem, plano que pode vir a realizarse ou não. O que importa resgatar, do ponto de vista da história
168 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Muito além do espaço: por uma história cultural do urbano. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, nº 16, 1995, pp. 279-290. Disponível em:
. Acesso em: 16/10/2008. 
169 PESAVENTO, 1995, p. 285. 79
cultural urbana, é que a ‘cidade do desejo’, realizada ou não, existiu
como elaboração simbólica na concepção de quem a projetou e a
quis concretizar.170
 A representação imaginária ganha força de realidade. Mas há uma variação
de sensibilidade em relação à urbe, ou seja, não há uma única representação e o
processo de construção desta não é neutro e nem objetivo: atribuir sentidos também
se liga a relações sociais e de poder. É assim que as intenções dos construtores dos
espaços podem se distanciar das construções simbólicas dos usuários do espaço.
 Recorrer à postura de análise de Carlo Ginzburg traz, para a compreensão
dos meandros das trocas estabelecidas no processo de representar o real, uma
perspectiva importante de observação. É a
[...] ‘circularidade cultural’ que permite a troca de signos entre o que
se poderia chamar a ‘cidade real vivida’ dos consumidores da urbe e
a ‘cidade sonhada’ dos produtores do espaço, ou ainda entre a
contracidade dos excluídos do sistema, na ‘contramão’ da vida, e a
cidade ordenada, bela, higiênica e segura das propostas
burguesas.”171
 O historiador que volta seu olhar para o passado deve considerar que as
representações passadas só são inteligíveis em relação a seus contemporâneos; em
relação ao espaço e ao tempo nos quais são produzidas.
 De fato,
[...] o leitor do presente [...] lidará com as dificuldades do filtro do
tempo, a dificuldade de acesso a códigos e significados [...] o
inevitável viés da dissimulação na constituição dos discursos [...] e,
sobretudo, com a certeza de lidar com materiais que já lhe chegam
como representação.172
 Sobre a Santo Antônio de Jesus das décadas de 1930 e 1940, de ruas em
expansão e calçamentos asfalticos e outras tantas ruas de chão batido, se
apresentou uma cidade desejada – pela elite e quiçá pelos menos abastados –,
sonhada, querida, uma cidade com “aspecto de coisa moderna”, esteticamente
organizada e limpa.
 No mês de abril as ruas dessa cidade, que se proclamou “livre das trevas”173
,
ficavam coloridas na invasão de foliões mascarados e fantasiados ao som estridente
170 PESAVENTO, 1995, p. 286-287.
171 PESAVENTO, 1995, p.288.
172 PESAVENTO, 1995, p. 294.
173 Nova era de modernidade.O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 4 de mar. 1949 , nº 2.304. ano 48. 80
das charangas. Assim como na cidade, se projeta uma festa imaginária sobre a festa
real, vivida.
 A Micareta santantoniense nas representações construídas pela elite no
Paladio assume foros de luxuosa e moderna festa, capaz de elevar a urbe do
recôncavo baiano à condição de moderna cidade. Mas, até que ponto a elite de
Santo Antônio de Jesus levou o luxo das Micaretas?
 Indícios apontam que nem todo o luxo das festas e nem o progresso da
cidade, cantados pelo Paladio foram vividos para além dos anseios escritos nas
linhas e entrelinhas do periódico. É certo que há a Micareta real, visível, mas a esta
correspondem outras folias micarêmicas imaginárias, idealizadas e desejadas.
 E esse é o motor da ação humana: o imaginário que
[...] é esse agente de atribuição de significados à realidade, é o
elemento responsável pelas criações humanas, resultem elas em
obras exeqüíveis e concretas ou se atenham à esfera do
pensamento ou às utopias que não realizaram, mas que um dia
foram concebidas.174
 Maria Clementina Cunha ao pensar a realidade carioca, assim define o
avanço das idéias de progresso, urbanização e modernidade:
Os imperativos da ordem pareciam tornar-se prioridade em várias
frentes: no desenho da cidade, nas prescrições da higiene pública,
no controle policial das multidões – e, claro, também no front de
Momo. Indiferentes aos apelos da ordem, os grupos carnavalescos
rompiam e rasgavam as fronteiras urbanas. Engalanados à sua
moda, queriam o centro da cidade, insistiam em cruzar a avenida [...]
tomavam conta dos bondes e atravessavam a capital subvertendo
com sua simples presença as regras da civilidade e do bom-tom para
os que desfrutavam dos encantos da belle epoque.
175
 A transformação do espaço na qual reside uma relativa ostentação da
urbanidade acabava por instituir um ideal para uma vida “moderna” e urbana em
Santo Antônio de Jesus:
Entre os serviços de utilidade pública executados pela Prefeitura
desta cidade, avulta o calçamento a paralelo da nova e bonita rua
Armando Tavares, artéria urbana que é [...] um adorno na terra
santantoniense [...] a administração fará muita coisa no sentido de
dar uma feição especial de elegância e progresso a terra em que
habitamos.
174 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias. Revista Brasileira de
História, vol. 27, nº 53, junho de 2007. p. 11-12.
175 CUNHA, 2001, p. 174. 81
Acompanhando o afan com que o Sr. Fraga procura melhorar a
aspecto geral da urbe, os moradores por sua vez se movimentam.
Nas imediações da área [...] em que está o matadouro Publico, há
presentemente a edificação de dezenas de casas, sistema
moderno, revelando a tendência que existe de termos brevemente
novas artérias, novas vias publicas em Santo Antônio.176 [Grifo
nosso]
 O afã pelo melhoramento da urbe parece mesmo ter contagiado os
santantonienses. Mas, será que o desejo de imprimir uma feição de elegância e
progresso à cidade, era partilhado por todos? Esse trecho retirado do jornal O
Paládio apresenta uma resposta afirmativa para a pergunta. A iniciativa de
melhoramento empreendida pela elite política – representada no trecho pelo então
prefeito Antônio Fraga –, teria levado moradores a investir também em um “sistema
moderno”. Esses moradores, é claro, possuíam recursos para financiar a edificação
dessas novas casas.
 Há um processo de redefinição da cidade e do cidadão que forja a imagem de
uma ‘coisa moderna’. Todavia, as artérias pulsantes de inovações carregavam
heterogeneidades, desigualdades e conflitos. Nos locais de vivência é que se
construíam os significados do festejar e viver a terra santantoniense e os indivíduos
envoltos nessa dinâmica, construtores de múltiplas identidades, significavam a
prática social em meio à diversidade de percepção, concepção e ação no mundo
social e físico, instituindo o ser social e o pertencer à cidade de Santo Antônio de
Jesus nas décadas em questão.
 O luxo das Micaretas santantonienses indica uma preocupação crescente em
torno da estética do folguedo. O empenho “[...] de cada grupo de senhoritas no
sentido de alcançar a primazia na graça e na beleza dos vestuários [...]”177 tem
aporte no processo de edificação de uma cidade moderna: “A nossa cidade entrou
numa fase de verdadeiro progresso [...] a cidade livre das trevas com o novo plano
de Luz e Força [...] experimenta assim um surto de animador progresso.”178
 É ampla a dinâmica de instituição e legitimação de uma vida social urbana
sob parâmetros que na época simbolizavam o progresso, a “civilização” e a
modernização. Mas é preciso ressaltar que tal modernidade é muito mais desejada
que praticada: ela reside muito mais no discurso elitista que nas ruas da cidade.
176 A luz – Nova era de progresso. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 21 de mar. de 1949 , nº 2.305, ano 48.
177 Micareta. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 20 de Mar. 1941, nº 1.995, ano 40.
178 Nova era de modernidade.O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 4 de mar. 1949 , nº 2.304. ano 48. 82
 “A vida comunitária pode estar intimamente relacionada às peculiaridades
físicas do meio ambiente e frequentemente explicada por elas [...]”179. Dessa forma
todo processo de urbanização e transformação do espaço citadino esta imbricado
nas mudanças e novas aspirações no campo das idéias. Mesmo tratando de uma
outra realidade – a Micareta em Jacobina – o trecho é elucidativo e faz pensar a
realidade santantoniense:
Aderir às constantes novidades significava altos graus de civilidade
no sertão. Essas mudanças atuam no tempo. E, como esses
amantes das novidades são classe dominante, usarão este novo
repertório cultural para negar os divertimentos do povo. 180
O universo festivo não está isolado, é parte da vida. E existe uma
transformação dessa vida. Há uma transformação não apenas das formas de viver,
mas de como se pensa a vida, a festa e o mundo. Muda o que é preferencial. A
questão é que essa mudança nem sempre é construída e aceita por todas as
camadas da sociedade com a mesma forma e intensidade. E é nesse espaço que se
expressam as negociações, as adaptações e os enfrentamentos. Essas nuances
serão aprofundadas no próximo capítulo.
O século XX presencia o fortalecimento de uma ideologia da capitalização. O
tempo vale dinheiro, é moeda de troca, é mercadoria. Na cidade, construída no
processo de instituição da idéia de modernidade, há um esmorecer dos laços de
solidariedade na composição da festa. Esses elementos são marginalizados.
“As práticas de solidariedade passaram a ser menos expressivas e mais
raras. O tratamento de muitas dimensões da ventura compartilhada transformou-se
em trabalho remunerado [...]”181. Nesse contexto, a diversão também se transforma
em mercadoria, e cria-se uma indústria massificante de entretenimento, que por
vezes se apropria das formas de brincar nas ruas – que no passado foram
produzidas pelos populares – e lhes atribui um valor de mercado.
Como afirma Charles Santana, em seu trabalho sobre a Fartura e Ventura
camponesas,
179 SAMUEL, Raphael. Documentação: História Local e História Oral. In:Revista Brasileira de História. São
Paulo, Volume 9, nº 19. Set. 89/fev. 90. p. 224.
180 SANTOS, 2004, p. 256.
181 SANTANA, Charles d’Almeida. Fartura e Ventura camponesas: trabalho, cotidiano e migrações: Bahia
1950 -1980. São Paulo: Annablume, 1998. p. 134. 83
[...] as diferenças entre o passado e o presente [...] não residem
apenas na predominância de relações assalariadas. As festas de
São João, tradicionalmente familiares e rurais, tornaram-se públicas
e urbanas. Com a intervenção de algumas prefeituras, cidades
organizam grandiosas festas ao ritmo da axé music, de guitarras e
trios elétricos.182
 A questão essencial da pesquisa não reside na busca dos elementos
modernizantes enquanto desarticuladores da festa; o ponto chave é a transformação
no imaginário do que é preferencial para as relações capitalizadas que compõem a
vida social da cidade e que vem tomando contornos mais definidos ao longo do
século XX. A modernidade caminha de mãos dadas com um tempo que não
comporta laços íntimos de solidariedade. Em nosso século, os ponteiros do relógio
marcam o tempo em que “não há tempo”.
 No último capítulo vamos analisar o movimento carnavalesco nas ruas
santantonienses, buscando ressaltar o processo de arrefecimento dessas
comemorações e a idealização da festa que emerge nas entrevistas realizadas
durante a pesquisa.
182 SANTANA, 1998, p. 136. 84
4 O GRITO DO CARNAVAL
A folia enunciada nos jornais, quase sempre acompanhada pelo adjetivo
“popular”, tem sua importância destacada em linhas que denotam a paixão pela
Micareta, mas já no início dos anos 30 do século XX a festa dos cordões das
senhorinhas enfrenta o desafio de manter o luxo pretendido em tempo de crise
econômica. Em 1932 O Paladio acusa a presença de poucos carros no cortejo da
folia.
Sem luxo e sem carros, porém com elegância, beleza, decência e
ordem os santantonienses tomaram os dias 27 e 29 de março para a
exibição das suas alegrias fixadas na folia e momices
micaremistas[...]
Os carros não eram em grande número. Santo Antonio tem tido
depressão no que se refere a esses veículos de praça ou mesmo
particulares, de um ano para cá.183
Pelas ruas da cidade a pouca afluência de carros ofuscava o luxo da
Micareta, mas os poucos que compareceram chamaram a atenção do público:
O domingo foi todo consagrado á alegria. Sahiram cinco cordões e
blocos diversos. Das duas da tarde em diante, a afluência de grupos
fantasiados não era pequena.
De alguns carros com senhorinhas trajando carnavalescamente
apareciam como gorgeios de aves canticos mellifluos e cheios de
sadio contentamento.
Serpentinas cruzavam-se e o vozerio alegre feria todos os
ouvidos.184
Os carros, chamados de pranchas alegóricas, participavam de forma decisiva
na animação da festa santantoniense. Ornamentados com artigos do comércio local
e/ou trazidos de Salvador, levavam senhorinhas que, ao longo do cortejo, entoavam
os versos ensaiados nas semanas antecedentes. A presença das pranchas
empolgava os foliões e o público.
Por alguns anos estiveram ausentes, ou se apresentaram em menor número.
Mas a sua organização era noticiada com detalhes nas páginas do Paládio.
Risos de Abril é o nome de uma prancha que vae dar a nota
distincta no folguedo do segundo domingo de Paschoa. Hontem
estiveram na redação d’O Paládio cinco das componentes da Risos
de Abril. São ellas: Idamira Ribeiro, Jacy Baptista, Regina Pithon,
183 A Micareta. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 01 de abr. 1932, p. 2,, nº 1.567, ano 31.
184 A Micareta. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 01 de abr. 1932, p. 2,, nº 1.567, ano 31. 85
Adélia Penha e Gerolina Britto. Essas galantes mocinhas estão
enthusiasmadas com os aprestos lindos que cuidadosas reúnem
neste momento para tornal-as adoráveis no conjunto de 20 e 22 de
Abril.
Gôndola do Amor é uma prancha que partirá da Avenida Barros e
Almeida bellamente ornamentada tendo no seu bojo cerca de 40
moçoilas.185
Além dos carros e apesar da crise, sete cordões e suas charangas deram um
colorido tom carnavalesco para as ruas da cidade nos dois dias da festa
carnavalesca em 1932.
 As Cosinheiras abriram os pórticos da folia acompanhadas por um bloco de
rapazes, Os Campeões do Samba – grupo citado no jornal apenas como
acompanhante do cordão feminino e sem detalhes sobre sua formação – que com
instrumentos de percussão, cordas e sopro entoaram notas para os versos que
embalaram o desfile das senhorinhas do cordão.
Venham ver as cosinheiras
Como gostam de brincar,
Mechem, mechem bem mechida
P’rá a panela não queimar.
Cosinhar não é p’rá todos
Não queremos nos gabar,
Temos gosto na cosinha
Não nos falta paladar.
Sobre provar a panella
Só se fez para mulher,
O segredo da comida
É no mecher da colher.186
Muitos temas são abordados pelas canções carnavalescas. Os versos
cantados pelas Cozinheiras são uma amostra do tema mais recorrente: a mulher. As
suas notas trazem a imagem de uma mulher sempre pronta a assumir seu papel de
cozinheira – um ofício exclusivo dela no período. Essa canção permite entrever os
preconceitos contra as mulheres vigentes no período.
Outros grupos participaram da folia: Piratas de Corações, São Salvador, Jazz
Jujú, Os Folgazões, Os Ciganos e um que, ao lado dos Campeões do Samba,
parece exceção entre cordões tão femininos: o Beija-flor.
185 A Folia vem ahi. O Paladio,Santo Antônio de Jesus, 20 de mar. 1941 , nº 1.995, ano 40.
186 A Micareta. O Paladio,Santo Antônio de Jesus, 01 de abr. 1932, nº 1.567, ano 31. 86
O Cordão batizado com o nome do pássaro, composto somente de homens,
cantares e charangas, desfilou pelas ruas da cidade e “[...] visitou diversas casas
onde o receberam com a alegria que despertava o interessante grupo”. Animaram as
ruas com os seguintes versos:
Oh! Que linda tarde esta
De alegria tão formosa!
Venham ver os Beija-Flores
Como estão beijando a rosa.187
Ao universo festivo os Beija-flores adicionam o beijo. A diversão nas
micaretas não consistia apenas no desfile, nas canções, nos cortejos de luxo ou nas
batucadas. Admirar e cortejar o sexo oposto era parte da festa. As rosas dos jardins
santantonienses eram desejadas pelos Beija-Flores. Muitos encontros podem ter
acontecido – e até mesmo facilitados – nesse espaço de comemoração. Desde
essas décadas o beijo fazia parte dos festejos de Momo.
Dois grupos masculinos fazem parte da folia no ano de 1932. Mas um detalhe
os distancia e pode esclarecer sobre o espaço dedicado a um e outro no jornal O
Paladio: o Beija-flor é apresentado como um cordão que teria contribuído para
engrandecer “a folia então dominante”; o outro grupo, Os Campeões do Samba, não
forma um cordão, mas um bloco que menciona no título, que adota para si, um ritmo
baiano, o samba, de muitos adeptos e críticas desde o século XIX.188
O que parece distanciar mais os dois grupos são os seus integrantes. Ao
contrário dos Beija-flores, Os Campeões do Samba são compostos por setores
menos abastados da sociedade. Eles se aproximam no desejo de diversão e são
distanciados pelo olhar das elites que tende a interpretar as manifestações
populares como formas menos dignas de compor as festas da micareta.
A oposição enfatizada no jornal é apresentada em versos cantados durante a
festa ou compostos para louvar o brilho das manifestações festivas produzidas pelas
elites locais. Os versos a seguir foram compostos por uma senhorinha que integrava
a organização dos cordões no ano de 1942.
Que tarde alegre
Que dia altivo
Por isso eu vivo
A peraltar...
A vida assim
187 A Micareta. O Paladio,Santo Antônio de Jesus, 01 de abr. 1932, p. 2, ano 31, nº 1.567.
188 A Micareta. O Paladio,Santo Antônio de Jesus, 01 de abr.1932, p. 2, ano 31, nº 1.567. 87
Que bela coisa!
Só se saltando
Agil, pulando
Como raposa.
Veja o cordão
Das moreninhas
Umas baixinhas
Outras compridas.
Todas gritando
Sapateando
Impulso dando
Ás avenidas.
Façam, meninas, coisa de suco, coisa que soe
A Micarêta é bem melhor,
É bem melhor que Bumba meu Boi.
A turma venha, toda galante, toda enfeitada,
É bem melhor, muito melhor que Batucada.
Nas alegrias, nestas folias, ha vida fôrra,
Clube tratado,
Bem apurado
Sempre é melhor que cabeçorra...189
Os versos cantam a alegria dos dias de micareta, o movimento dos corpos
pelas ruas, os cordões repletos de senhorinhas galantes e enfeitadas, que
impulsionam as avenidas e a modernização da cidade. Os versos refletem também a
comparação – que por diversas vezes foi ressaltada nas páginas do Paladio – entre
as manifestações das elites e dos populares. Para as elites, a micareta das
senhorinhas manifestava a disposição dos santantonienses pelas coisas modernas.
 Os cordões tratados e bem apurados, enfeitados e galantes, eram colocados,
segundo a perspectiva de interpretação das elites locais, em um patamar acima das
manifestações populares, como a batucada, o Bumba meu Boi e os Zé-pereiras.
As brincadeiras populares aparecem em alguns exemplares do Paladio, mas
a grande parte das manifestações populares no espaço da micareta não são citadas
ou estão sob a denominação de farroupilhas, máscaras desasseiadas ou mascarada
avulsa. Há uma diversidade de manifestações viventes no espaço da micareta, que
o título da festa e a ênfase com que são tratados os cordões das senhorinhas,
podem camuflar. Os cordões estão presentes de forma decisiva na festa, mas nem
só de cordões se fez a micareta em Santo Antônio de Jesus. No espaço da festa
189 A Quadra é Própria. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 06 de mar. 1942, no
 2.040, ano 41. 88
fervilhavam espaços de festejar diferenciados, mas ao fim o anseio de todos era
entregar-se ao riso, aos momentos orgiásticos dos dias carnavalescos.
 Cordões e pranchas de senhorinhas, carros de realce enfeitados com flores e
repleto de moças em seus trajes coloridos, Zé-pereiras, blocos de rapazes no ritmo
do samba, batucadas uniformizadas, Cheganças, Marujadas e grupos miúdos – não
tão pequenos como pode sugerir o nome – com seus tambores de lata, enfeitavam e
agitavam a vida citadina santantoniense nos dois dias consagrados à micareta.
Nesse quadro de algazarra festeira não se pode esquecer um intrigante elemento
que vários anos esteve presente nas ruas: os carros de crítica.
Não resta dúvida que a Micareme terá suas manifestações este
anno. Senhoritas da elite preparam cordões primorosos e estão
interessadas vivamente pelo brilho desse festejo de Paschoa.
Carros de critica e de realce organisam as suas exhibições alegres e
gritantes.190
Ao que parece a proposta desses carros de crítica era levar ao espaço festivo
um pouco da vida que existia fora das muralhas carnavalescas, tratando assuntos
econômicos, políticos e costumes com uma boa pitada de riso. Nas décadas de 30 e
40 a presença dos carros de crítica e de realce marca as apresentações da
micareta, com suas exibições alegres e suas críticas espirituosas. A realização da
micareta estava ligada ao meio social que a condicionava e nesse elemento a festa
exibia o seu teor político.
No carnaval carioca, os carros de crítica se tornam comuns após a guerra do
Paraguai. Através do riso, esses carros, levados para as ruas pelas grandes
sociedades cariocas, se colocavam a favor da abolição e em defesa calorosa da
República. As sociedades carnavalescas chegam até a comprar cartas de alforria e
talvez por isso tenham alcançado tanta popularidade. As críticas atacavam também
o império e seus expoentes.191
Em Salvador os carros de idéia e os carros de crítica são elementos
importantes nos desfiles dos clubes carnavalescos. Os primeiros foram marcados
pelo tema profano, representando “[...] personagens e cenários da antiguidade
clássica greco-latina ou com o luxo e a pompa das cortes européias”; enquanto os
190 O Paladio,Santo Antônio de Jesus, 17 de mar. de 1939, nº 1.908, ano 38.
191 FERREIRA, Felipe. O Livro de Ouro do Carnaval brasileiro. Rio de Janeiro; Ediouro, 2004. 89
carros de crítica demonstravam os elos entre os clubes e movimento abolicionista e
republicano.192
No século XX, no contexto carioca, a postura é outra. Nos carros de crítica se
apresenta uma defesa das atitudes governamentais e por outro lado é expressa uma
condenação das causas populares. E não poderia ser de outra forma: as sociedades
se enfraqueceram a partir da primeira década do século passado, chegando a
depender do dinheiro público para realizar seus préstitos.193
Nas décadas de 1930 e 1940 a Micareta domina o reino de Momo vibrante
nas ruas santantonienses. O Carnaval, com manifestações menos ruidosas,
movimentou as ruas alguns anos nas duas décadas – suas manifestações nesse
período se concentram nos espaços fechados –, porém o esforço e a atenção dos
foliões é direcionado para a comemoração da micareta.
Quando acontece o Carnaval as manifestações são as mesmas, ou seja,
cordões, pranchas alegóricas e carros de crítica fazem parte da primeira e da
segunda festa de Momo. Nesse rol ainda está incluso o famoso Zé-pereira, que no
carnaval de 1942 dominou quase que exclusivamente as ruas:
Terça-feira os Zé-pereiras deram um ar da sua graça. Logo cedo,
uns grupos alegres transitavam com alarido forte, vibrando tambores
e pandeiros, saracoteando de rua em rua, nessa expressão ruidosa e
franca que o povo sabe ter toda vez que se abrem as portas da
oportunidade para as suas manifestações de contentamento.194
Nessas décadas o repicar dos tambores dos Zé-pereiras abriam alas para a
chegada da folia no carnaval e na micareta. Seguiam-se os grupos micaremicos em
desfile com variadas formas de festejar. Cortejos luxuosos, ou improvisados;
máscaras adquiridas em lojas da cidade ou da capital; mascarados que
confeccionavam a própria indumentária nas pausas do trabalho; blocos de pierrôs,
pierretes, arlequins e colombinas inundando a cidade com o riso farfalhante de
Momo.
192 FRY, Peter; CARRARA, Sérgio; MARTINS-COSTA, Ana Luiza. Negros e brancos co Carnaval da Velha
República. In: REIS, João José. Escravidão e Invenção da Liberdade: estudo sobre o negro no Brasil.
Brasiliense, 1988.p.249.
193 FERREIRA, 2004.
194 O povo nas ruas. O Paladio, Santo Antônio de Jesus,20 de fev. 1942, nº. 2.038,ano 41. 90
4.1 Uma versalhada supimpa
 Para as festividades da micareta muitos versos foram compostos. Assuntos
variados tinham espaço nas composições cantadas por senhorinhas, feirantes,
pedreiros, visitantes, em fim, por foliões que tomavam as ruas, e entre confetes e
serpentinas, entoavam as notas carnavalescas.
 Os versos não eram ouvidos apenas nos cordões. Parte das comemorações
da micareta – e do carnaval – era o som que ecoava através do sistema de autofalantes por toda a cidade: “O serviço de alto-falantes improvisado, não parou,
durante a festa, tocando discos animados e novos para o contentamento geral.”195
 Durante as apresentações dos blocos e grupos da Micareta, e nos dias
antecedentes, as músicas e versos, que seriam cantados na festa, ressoavam pelo
sistema de som “Voz das Palmeiras”. O reino de Momo era anunciado e o clima
festivo se instalava em Santo Antônio de Jesus.
 Em 18 de fevereiro de 1951 foi publicada no jornal O Detetive, uma poesia
enviada por Cypriano Leal – santantoniense residente em Salvador. Sob o título
“Saudades”, ela apresenta os seguintes versos:
Noite clara de luar
A quentura retorcia-se mesmo assim.
Lá fora,
Por entre as pedras esfumaças das ruas
Emparalepipipadas.
Eu quase sosinho, abraçava tudo com os olhos,
E pensava em ti.
Sorria
Com a idéia macabra
De fazer bilú no teu queixinho.
Depois uma estrela piscou o olho para mim,
Epensando que a estrela era 1 menina, dei adéus,
Oh! Saudade danada!
Era o capacete de um soldado de bombeiro!
A poesia de estilo moderno agradou os redatores e foliões mais próximos do
jornal O Detetive. Os versos foram musicados por Júlio Padria, e cantados no
serviço de auto-falantes durante a micareta daquele ano.
 A presença dos auto-falantes integrava o cronograma da festa, e por vezes,
conduzia o desfiles pelas ruas. O “[...] extra-ordinário sistema de auto-falante” dava
“[...] banhos de trovoada nos ouvidos de todo o mundo, talvez para que o povo
195 A Micareta. O Detetive, Santo Antônio de Jesus, 8 de abr. 1951, no
 188, ano 4. 91
acordasse do sono em que vive mergulhado”196, forte sonolência com referência às
festas momescas.
Nos depoimentos encontramos referências ao sistema de som, como parte
importante das festas momescas. A expectativa criada em torno da festa era
embalada pelas sonoridades carnavalescas emanadas pelos auto-falantes.
[...] música, a gente criava [...] ensaiava as novas e as velhas
também. As vezes a gente ia assistir o carnaval na capital pra trazer
as músicas de lá. Começava a cantar as músicas bem antes. No
sistema de som, eles sempre colocavam algumas semanas antes da
festa. Tinha sempre uma marcha, um verso de carnaval. Isso
animava. A gente mandava a programação do desfile, do cordão, pro
jornal. Mas mandava pro sistema de som também. Era pra deixar o
público curioso.197
 Emerge nesse ponto, a presença do referencial externo na configuração da
micareta santantoniense. A capital da Bahia era o modelo e a fonte, na qual as
senhorinhas e representantes das elites locais iam buscar as novidades que
animariam as comemorações da micareta. “As novidades da capital faziam sucesso
[...]”198, também na micareta de Santo Antônio de Jesus.
 Outras cidades, como Rio de Janeiro, eram referências procuradas para
incrementar a festa. Os versos, importados de lá, animaram as ruas daqui, em 1941.
Eu não quero que você
Me abandone mais,
Você já fez uma vez
Vae fazer duas e três
Mas a quarta você não faz
Porque eu não vou atraz.
[ilegível]
Eu hontem cheguei em casa
Helena
Te procurei e não encontrei.
Fiquei tristonho a chorar,
Passei o resto da noite a chamar
Helena, Helena
Vem me consolar.
Você não tem palavra
Falou-me que ia ao cinema
E foi dansar,
196 A Mi-careta se apresentou como poude. O Detetive, Santo Antônio de Jesus, 23 de abr. de 1950,p. 01, no
 141,
ano 3.
197 R. M. Santos,82 anos, aposentada. Entrevista realizada em 10/04/2005. Santo Antônio de Jesus.
198 N. Gomes, 83 anos. Aposentada. Entrevista realizada em 07/10/2007.Santo Antônio de Jesus. 92
Olhe que o sol já está fora
Cinema não acaba a esta hora
Se assim continuar
Eu vou lhe abandonar.
Meu bem o trem atrazou,
Por isso estou chegando agora,
O trem atrazou meia hora,
E você não tem razão
Para me mandar embora.
Guiomar, vem cá!
Vem cá, Guiomar!
O nosso amor jamais há de acabar,
Fizeram tudo, tudo p’ra nos separar.
Mas nosso amor elles tem que respeitar.199
Assim como as canções compostas pelos foliões santantonienses, os versos
cariocas retratam os temas favoritos entre os participantes da festa. A mulher e o
amor são cantados em diversas situações do cotidiano.
O ritmo do samba também animava a micareta. Em 1942 Antônio R. Andrade
compôs o samba publicado no jornal entre as canções que animariam os cordões
naquele ano.
Micareta chegou na hora H!
Tamburim esquentou, vamos brincá!
Quando eu vejo um cabrinha arripiado
Me esqueço de tudo e deixo o amor ao lado.
Quando o galo cantou de madrugada
A cuíca berrou na batucada,
E o sol no horizonte apareceu,
A fuzarca dobrou e o dia amanheceu.
O samba é bom
Tem pandeiro e violão,
Faz esquecer
A dor de uma paixão.200
 Através do ritmo e dos versos a micareta anunciava seus encantos,
contaminando o espaço citadino com as brincadeiras momescas. No reino da
diversão os participantes desejavam esquecer de tudo; esquecer também as
desilusões amorosas. Nessa canção é possível notar uma relação ambígua que
emerge no espaço festivo: o desejo de esquecer a vida fora da festa é cantado
nesses e em outros versos; entretanto essa vida que se quer esquecer está
intrinsecamente ligada à festa e é tratada em canções, versos e fantasias.
199 A folia vem ahi. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 20 de mar. de 1941, p. 01, nº1.995, ano 40.
200 Dois dias ruidosos estão iminentes. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 10 abr. 1942, no
 2.044, ano 41.93
O desejo de esquecimento convive com o seu oposto: a lembrança constante
– mesmo que marcada pelo riso – das relações do cotidiano não festivo, no interior
da micareta.
A poesia carnavalesca que é “sempre atraente, pittoresca e vibrátil”201, traz
diversos assuntos para o espaço da folia. Brinca com o cotidiano, fala de amores e
traições. Até mesmo a festa é cantada nas ruas santantonienses, pelos grupos que
participam da micareta. Os rememorados em uma entrevista, são um exemplo:
 A Colombina chegou,
 Está chamando Arlequim,
 Vamos dançar meu amor,
 Do começo ao fim.
 A micareta chegou,
 Com muita animação,
 Trazendo muita alegria,
 Pr’o seu coração.202
Os versos eram cantados pelos grupos durante os desfiles, nos bailes, pelo
sistema de auto-falantes e distribuídos pelas ruas nos dias de festa. Referências
desse último meio de divulgação aparecem apenas n’O Paladio. Em 1932 aparece
na festa o “Parnaso”. Era uma espécie de clube literário que, durante as festas da
micareta, distribuía “[...] muitos versos patuscos, dedicados ao deus Momo.”203
Em 1951, ano em que a micareta não apresenta um grande cortejo, o sistema
de auto-falantes, será responsável pela maior parte das músicas ouvidas na cidade.
Quando os cordões retraíram suas apresentações e poucos grupos se
colocaram nas ruas da cidade para fazer a folia da micareta, do sistema de autofalantes saiam as músicas que animavam e faziam recordar das festas que enchiam
as ruas de uma alegria farfalhante.
A festa não era mais tão grande. O povo foi esqueceno [sic], deixano
[sic] de lado, cuidano [sic] da vida. Ainda tinha um grupo ou outro
que saia na rua [...] tinha grupo de criança, de menina. [...] todo
mundo sentia saudade, mas ninguém fazia mais. [...] na época da
festa sempre tocava no auto-falante as músicas que a gente cantava
no cordão. [...] as músicas que cantava na capital também. A gente
ficava cantarolando [pausa] mas festa mesmo não tinha mais.204
201 A folia vem ahi. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 20 de mar. de 1941, p. 01, nº1.995, ano 40.
202 N. Gomes, 83 anos. Aposentada. Entrevista realizada em 07/10/2007.Santo Antônio de Jesus.
203 O Pessoal do Parnaso. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 01 de abr. de 1932, nº 1.567, ano 31.
204 R. M. Santos,82 anos, aposentada. Entrevista realizada em 10/04/2005. Santo Antônio de Jesus. 94
 Durante todo o percurso da festa, a referência à capital da Bahia sempre está
presente. Seja com os versos, com os materiais que serviam na ornamentação, ou
com idéias de fantasias e decoração dos carros, Salvador era um modelo posto
pelas elites santantonienses para os desfiles das senhorinhas. Entretanto, mesmo o
referencial externo não é capaz de impedir o declínio da festa.
Essa lembrança de um tempo em que a festa dos cordões perde o seu
destaque na sociedade santantoniense é narrada com um tom melancólico. As
palavras e a voz – da mulher que colocou fantasias e participou de muitos desfiles –
parecem embalar a saudade de uma festa e de um tempo que não pode retroceder
e trazer de volta o brilho das senhorinhas dos cordões. Mas, as narrativas
saudosistas que gravitam em torno da festa não residem apenas no presente.
No início da década de 1950 podemos encontrar nos jornais da época notas
que falam com pesar do processo de arrefecimento experimentado pelas festas
momescas.
Nos dois dias do Carnaval, em Santo Antonio, nenhuma cena nova,
nenhuma diversão curiosa e condizente com a efeméride assinalada
pelos três dias do ano! O povo no seu justo desejo de se distrair, saiu
em grupos saltitantes cantarolando ou tocando sua gaita e seus
búzios, cabriolando com alegria na via publica, disposto a sair do
marasmo habitual e dar arras aos seus nervos cheios de vida e
enfarados do trabalho isento de folgas e distrações. Grupos
elegantemente trajados não tivemos. Tivemo-los alegremente
agitados. Mas em Santo Antonio já se fez ótimo Carnaval em tempos
que se foram.205
Apesar do movimento presente nas ruas, o jornalista responsável pela
elaboração da nota considera que “nenhuma diversão curiosa e condizente” fez
parte do carnaval. Se existiam manifestações festivas naquele momento, qual o
motivo do “ótimo Carnaval [residir] em tempos que se foram”? As relações entre a
presença e a afirmação da ausência do carnaval serão analisadas a seguir.
Traremos para esse estudo algumas nuances desse discurso saudosista que
aflora em um momento em que as festas ainda ocupam as ruas de Santo Antônio de
Jesus.
205 O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 02 de mar. de 1950, p. 01, nº2.336, ano 49. 95
4.2 O Carnaval... nos braços de Morfeu!
Desperta pierrot! Que enorme tristeza é essa que sentes
e que invade o teu ser? Canta! Ri! Como a onda que
passa de Colombinas, Pierrots e Arlequins!
Não vale a amargura da realidade da vida, é preciso
mentir com os lábios, mentir com os olhos, mentir com o
coração. Pierrete é traquina e risonha. Não ouves a
melodia da sua voz que palpita de goso e estua de
alegria? [...] ela canta para ouvir a gente cantar! Ela ri
para ouvir a gente rir! Onde passa Pierrete passa a
alegria... Porque? Não sei! Penso que é porque ela é a
imagem do riso e da alegria. (O Detetive, 1950, p.04)
Enquanto a micareta empolgava a mocidade santantoniense e atraia o público
curioso para as apresentações dos cordões e pranchas alegóricas, apareciam nos
jornais notas que condenavam o retraimento dos foliões nos dias de Carnaval.
Aqui na cidade não temos noticia alguma de movimento
carnavalesco. A orgia pagã não entusiasma o nosso povo. Gosta,
entretanto, da Micareta. E acreditamos que ela este ano apareça
com cordões vivos e estonteantes. Sinais dessa previsão já os temos
insofismáveis. Dá-se apenas entre nós uma simples mudança de
quadra: em vez de Fevereiro, nossas festas retumbantes vão ter
logar em Abril.206
Há uma concentração de forças para a realização da micareta. Desde os
exemplares publicados no início de 1942 se encontram notas que evidenciam em
primeiro plano as distinções entre os dias da Micareta e do Carnaval.
Santo Antonio de Jesus não se apaixona pelos festejos
carnavalescos. Gosta sim das festividades micaremicas, das
fantasias do 2º Carnaval, logo depois da Páscoa, e desta predileção
o nosso povo tem dado solenes provas.
Pelo Carnaval, quase nada se vê em nossa terra, salvante alguns
desenxabidos ‘máscaras’ mal amanhados ou grupos sem atrativos
nem arte, percorrendo as ruas, sem ninguém sobre eles demorar a
atenção[...].
Por ocasião da ‘Micareta’ as coisas correm de modo diferente. As
moças, que em Santo Antonio constituem a alma das bonitas festas
da rua, promovem todos os anos curiosos cordões, nos quais a
fantasia berrante corre em parelha com os ademanes, a imaginação
felicíssima e a graça adorável.207
O que emerge na distinção traçada pelo jornal, não se resume em simples
gosto diferenciado por uma ou outra data de carnavalizar: reconhecemos a marca
206 O Carnaval... em Santo Antônio de Jesus. O Paladio, Santo Antônio de Jesus,13 de fev. 1942, no
 2.037, ano
41.
207 Carnaval e Micareta. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 30 de jan. 1942, nº 2.035, ano 41. 96
das idéias de modernização que postulavam como preferencial a festa encenada
pela “[...] alma das bonitas festas das ruas”: as senhorinhas da elite. Apenas “a
graça adorável” dos desfiles da fina flor santantoniense teria lugar nos elogios
carregados de entusiasmo.
Na perspectiva das elites, somente os seus desfiles davam provas do gosto
pela festa carnavalesca. Na sua ausência, “o povo” perderia o gosto e arrefeceria as
suas manifestações?
Em 1942, nos dois dias consagrados ao Carnaval os cordões da elite não
estiveram nas ruas – suas exibições estavam sendo preparadas para a micareta do
mês de abril –, entretanto outros grupos apontados pelo jornal como “mal
amanhados” estiveram nas ruas, como veremos nas linhas que se seguem.
No exemplar do jornal O Paladio, publicado logo após a festa, uma nota
intitulada “O Carnaval em Santo Antônio de Jesus”, traz a descrição dos dias de
Carnaval:
‘Carnaval em Santo Antonio de Jesus’... É um modo de dizer. Não
tivemos Carnaval. O domingo, então, passou de todo alheio ao
tradicional divertimento pagão. Todo mundo esperava que
perambolassem saltitantes nas ruas, mas foi uma decepção. Nem
um mascarado, um simples Pierrot, uma Colombina errante nada, o
domingo passou virgem no que tange a esse ‘pecado’.208
A ausência do carnaval nas ruas da cidade mais uma vez é ressaltada.
Entretanto, os foliões não estavam adormecidos. Pode ser que houvesse entre eles,
representantes das elites, mas não o suficiente para o jornal considerar que teria
existido carnaval em 1942.
Em fevereiro, as ruas não estavam povoadas de cordões, pranchas, carros de
crítica e de realce, como desejavam as elites relacionadas com a escrita do jornal.
Ao contrário dos preparativos anunciados para a micareta daquele mesmo ano, os
jornalistas afirmam que poucos foliões estiveram nas ruas no segundo dia de
comemoração.
Na terça-feira, o Zé Pereira adentrou nos pórticos da festa e ao longo do dia
outros foliões apareceram, mas nenhum deles despertou o interesse dos jornalistas.
Porém terça-feira [...] de tarde, das 3 horas em diante recrudesceu o
aparecimento dos fantasiados. Quase nada se viu de apurado e
208 Carnaval em Santo Antônio de Jesus. O Paladio, Santo Antônio de Jesus 20 de fev. de 1942, nº 2.038, ano
41. 97
galante, quase nada a não ser um grupo de rapazes ao som de
flautas e violões. Tudo mais que apareceu foram fantasiados e
entrudos. [...] embaçados fazendo esgares e mesuras sem
atrativos.209
Como pode não haver carnaval? O fato é que, o luxo, a elegância, o
brilhantismo, a ordem, tão caros para o sonho de modernização, acalentado pelas
elites, não encontrou aporte nos “embaçados” e “entrudos”. Todavia, isso não
implica em ausência de carnaval. Muitas outras festas e manifestações poderiam ter
acontecido naquele ano, além das citadas no próprio jornal, entretanto os
participantes dos “entrudos” que faziam “mesuras sem atrativos” não residiam no
seio das elites.
Uma tendência passa a marcar a data carnavalesca em Santo Antônio de
Jesus – pelo menos para um setor envolvido. Na década de 1940, as elites se
recolhem para os salões dos clubes realizando bailes e matinees, reservando sua
saída às ruas, para a comemoração momesca do mês de abril.
Na micareta muitos bailes também eram realizados, mas nessa data as elites
ocupavam os dois espaços: as ruas e os clubes. Enquanto no carnaval se fechavam
cada vez mais nos espaços restritos.
Eis ai uma prova da boa orientação e fino gosto da sociedade:
festejar por meio de reunião dançante os dias consagrados aos
folguedos de Momo.
Não obstante os bons planos da elite, o zé-povo não deixará de fazer
a sua festa de rua [...].210
Eram tão animados os bailes do Palmeirópolis.[pausa] A charanga,
as luzes coloridas [...] as fantasias galantes. Era o alto do carnaval.
Na micareta também tinha baile [...] a gente também saia pela rua,
no cordão, na prancha [...] todas de fantasia elegante, desfilava na
rua [...] o cordão era elogiado por onde passava. Inocentes em
Progresso, era o nome do cordão. [...] depois sempre tinha baile pra
encerrar a festa.211
As elites nos famosos bailes do Palmeirópolis, os populares dominando as
ruas e praças, saltitando, colorindo, fervilhando os espaços públicos de Santo
Antônio de Jesus.
209 Carnaval em Santo Antônio de Jesus. O Paladio, Santo Antônio de Jesus 20 de fev. de 1942, nº 2.038, ano
41.
210 Um Carnaval digno de nota. O Paladio, Santo Antônio de Jesus. 13 de fev. de 1941, nº 1.989, ano 40.
211 N. Gomes, 83 anos. Aposentada. Entrevista realizada em 07/10/2007.Santo Antônio de Jesus. 98
O olhar direcionado para o espaço da festa, transcrito nas páginas do Paladio,
parte do seio das elites e está ‘embaçado’ pelo ideal de modernização. Esse olhar
não consegue – ou opta por não conseguir – reconhecer nas manifestações dos
populares expressões do carnaval.
Para as elites envolvidas com O Paladio, as ruas da cidade durante o
carnaval, estavam imersas no “[...] sono, em trevas que parecem não ter fim [...]” e
apenas a Micareta com as suas exibições vibrantes poderia fazer frente a esse
processo: “Felizmente, no 2o
 Carnaval, os farroupilhas freiam os seus entrudos, para
render francos elogios e admirar o desfile organizado e brilhante das senhorinhas
que são o melhor estrato da nossa terra.”212
A partir de 1942 se tornam cada vez mais freqüentes no jornal, protestos
contra o desaparecimento do carnaval, ao passo que as descrições de
manifestações nos dias de carnaval nas ruas da cidade, diminuem ou são ausentes.
Em 1949 foi publicada na primeira página do jornal O Paládio, com o título
“Carnaval na Bahia”, uma nota interessante, não apenas para pensar o processo de
arrefecimento da festa, mas para pensar a origem das festas carnavalescas no
espaço santantoniense. Vejamos:
A Bahia, ou melhor – a cidade do Salvador, vae ter o seu luxuoso
Carnaval em o ano fluente. Nós no interior deveríamos fazer também
o Carnaval, senão com a pompa das grandes cidades, ao menos
com a beleza que os nossos recursos pudessem criar e suportar.
Mas cruzamos os braços todo o ano na quadra carnavalesca.
Cruzamos os braços com vislumbres tais de indiferença, que chega a
parecer que não possuímos mais a fibra do gosto pelas coisas belas
e que os nervos do prazer morreram todos gelados em o nosso
organismo. Pois, não há dinheiro para o custeio de tantas outras
festas? Há, está provado que há.
[...]
Já se fizeram festas carnavalescas aqui na cidade. Atraentes clubes
já se exibiram em nossas ruas há uns 36 anos, ou pouco menos.
Ninguém sabe porque morreu o calor que entre nos acendia o facho
do entusiasmo para a celebração ruidosa dos folguedos pagãos.
É necessário que esse calor volte a dominar nossas almas.213
O referencial da capital da Bahia é mais uma vez colocada na discussão
fazendo emergir das páginas do jornal a necessidade – da elite – de realizar uma
festa que “alegra e aviventa”, mas também ratifica os “foros progressistas” da Cidade
212 O Paladio, Santo Antônio de Jesus,12 de fev. 1946.
213 Carnaval na Bahia. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, p. 01, 03 de fev. 1949, nº 2.301, ano 48. 99
das Flores. Santo Antônio de Jesus deveria seguir os passos da capital – reduto da
modernização e exemplo para as cidades do interior.
Nas linhas finais o autor remete para o carnaval de 36 anos atrás – o jornal é
publicado em 1949 – o que nos leva a acreditar que na segunda década do século
XX já existiam comemorações carnavalescas em Santo Antônio de Jesus. Outros
indícios apontam nesse mesmo sentido. Não encontramos testemunhas das
primeiras festas carnavalescas, mas em alguns depoimentos surgem lembranças
referentes a essas festas:
Gostava muito de brincar o carnaval. Era uma festança boa [...]
naquele tempo que era brinquedo bom. Minha família toda saia pra
brincar: minha mãe, meus irmãos, o pai, todo mundo ia. [...] minha
mãe sempre contava das festas que ela ia no tempo de moça.
Sentava de noitinha na varanda e contava do desfile, das fantasias,
dos clubes [...] reunia sempre um grupo e vinha pra ver a festa.
Naquela época ela não morava aqui ainda, ela morava em Nazaré.
Veio pra cá depois que casou. Chegou aqui em 1917.214
Os clubes carnavalescos desfilaram animados nas ruas santantonienses
desde meados da segunda década do século XX. Acompanhados pelos cordões e
grupos da Micareta, animaram as ruas, praças e salões nas décadas de 1920 e
1930. Despertaram risos, alegrias e paixões naqueles que assistiam e participavam
da festa. A partir de 1940 surgem os primeiros indícios de redução dos animados
desfiles dos clubes carnavalescos. A Micareta, por outro lado, está em ascensão.
É preciso pontuar um dado importante: nos primeiros anos a década de 1950,
não só a ausência do carnaval despertava protestos: a micareta, tão elogiada e
amada, não estava mais nos seus “dias de ouro”.
Estavam arrefecendo as manifestações carnavalescas e micaremicas, que
por muito tempo foram consideradas como símbolos da presença da modernização
de Santo Antônio de Jesus: “A nossa Micareta, este ano, apesar de não ter
correspondido á espectativa dos anos anteriores, porém não se deixou de brincar
um pouquinho”.215
“Sem as grandes vibrações dos anos anteriores, as festas da Micareta [...]” se
apresentam nos anos 50 do século XX, sem o luxo enaltecido nas décadas
antecedentes, como parte de um processo de modernização experimentado pela
214 Rita Sousa, 78 anos, aposentada. Entrevista realizada em 14/01/2008. Santo Antônio de Jesus.
215 A Micareta. O Detetive, Santo Antônio de Jesus, 8 de abr. de 1951,p.01, no
 188, ano 4. 100
cidade. Dessa forma, satisfaziam “[...] mais ou menos, o anseio e a espectativa dos
que não despensam o torvelinho e o movimento das horas alegres.”216
A partir de 1950, as festas carnavalescas não desaparecem, mas as elites se
retiram ou diminuem a sua participação efetiva nessas datas. Afinal, o que poderia
ser identificado com progresso eram os cordões brilhantes e luxuosos.
Mas, porque a elite se retira do cenário da festa? Porque não podia custear o
luxo que poderia ser identificado com modernização; porque os populares estavam
cada vez mais presentes nas ruas da cidade durante as festas; porque há uma
mudança de interesse em alguns setores das elites e o desejo de organizar e
custear as ditas festas desaparece. São explicações possíveis, que não se anulam,
mas caminham juntas.
Há uma crise com a perda dos ícones que serviam de referência para o sonho
de modernidade. Uma crise que se reflete na emergência de notas carregadas de
saudosismo evocando as imagens dos carnavais e micaretas passados.
Nessa pesquisa, as memórias evocadas pelos entrevistados estão
carregadas de saudosismo. Mas, nas notas publicadas nos jornais, sobretudo a
partir de 1950, reconhecemos um tom que perpassa a todas: o sentimento de perda
de um símbolo, de uma festa que identificava e destacava a cidade na região.
O Carnaval... nos braços de Morfeu – nota já evidenciada nesse texto –
publicada em fevereiro de 1950, é um exemplo marcante da nostalgia que
encontramos nas páginas dos jornais em um período em que as festas ainda
existiam nas ruas da cidade.
O redator do texto inicia com uma vibrante descrição de uma “[...] verdadeira
festa de cores” que teria encantado seus “olhos de repórter”, lançando-o em um “[...]
sonho cor de rosa [...] aos paramos asuis da cocaina, da fantasia e da ilusão [...]”;
para em seguida revelar que tudo “[...] não passa de uma ironia, pois a verdade é
que [...] Santo Antônio, com relação ás festas de Momo [...] ” estava mergulhada em
“uma frieza enervante”.217
Dos grandes desfiles, passando pelas notas de protesto contra o retraimento
da festa carnavalesca, às imagens selecionadas pela memória para serem
lembradas. No próximo item vamos analisar as relações entre os participantes –
216 A Mi-careta se apresentou como poude. O Detetive, Santo Antônio de Jesus, 23 abr. 1950,p. 01, no
 141, ano
3.
217 O Carnaval... nos braços de Morfeu. O Detetive, Santo Antônio de Jesus, 26 de fev. 1950,p. 01, no
 133,ano 3. 101
expectadores ou integrantes dos grupos – e a micareta, explorando as narrativas
elaboradas pelos entrevistados, sobre a festa.
4.3 Nos recantos da memória
O trabalho da memória privilegia determinadas imagens em detrimento de
outras. As escolhas têm seus laços fincados nas circunstâncias e valores de uma
época. Quando os participantes da festa rememoram os dias de folia, evocam uma
imagem do passado, conduzida por uma marca indelével do presente.
A evocação de um passado repleto de harmonia e alegria em dias de
micareta, funciona como uma válvula de escape de uma história recente em que a
festa é marcada pela violência, e mais; uma festa que o corpo envelhecido não pode
acompanhar com a mesma vibração da juventude.
Era festança boa essa micareta. Se voltasse era bom, né. [...] mas
hoje eu não vo [sic] mais pra essas festa. Só tem bandalera, só tem
bandalera. [...] tinha muito grupo que saia pela rua. Já fiz batucada.
Saia nos grupo [sic] pela cidade chamano pra [sic] festa, anunciano
[sic]. Era uma alegria [pausa] não é mais pra mim. A mocidade pode
levar a festa, fazer de novo [pausa] pra mim não da mais não.218
O corpo que faz emergir as lembranças já não pode imprimir o mesmo ritmo
às canções; seu movimento não é mais tão ágil. O tamborilar dos dedos sobre a
mesa não segue o mesmo compasso dos versos carnavalescos que animaram os
desfiles dos blocos durante a micareta.
O corpo vetusto desloca o olhar no tempo, para alcançar o tempo em que o
corpo jovem, encenava os animados desfiles ao lado dos amigos e companheiros do
trabalho:
Da lida, do dia-a-dia [...] a gente tava [sic] junto na lida, batendo
massa, levantano [sic] casa [...] e se juntava pra batucar na festa. Era
duas vez no ano: no carnaval e na micareta. Mas eu gostava mesmo
era da micareta. [...] Saia marujada, batucada. Tinha grupo de todas
rua aqui. Da Juraci, Barros e Almeida, Rua da Linha, Santo Antonio,
e por aí vai.219
218 R. G. Santos, 80 anos. Lavrador. Entrevista realizada em 26/07/2008. Muniz Ferreira.
219 Almerindo Queiroz, 86 anos. Pedreiro. Entrevista realizada em 05/05/2007. Santo Antônio de Jesus. 102
Selecionando o que mais lhe apraz nas vias do passado, as narrativas dos
depoentes, têm a marca do saudosismo que revela um sentimento de tristeza
direcionado às festas que desapareceram das ruas da cidade. Mas, também são
marcadas pelo contentamento que emerge quando o exercício da memória esmiúça
as lembranças da festa fazendo-a despertar do sono e desfilar – com as
sonoridades escolhidas – nos caminhos da memória.
Brinquei muito no cordão e na prancha. Na prancha sempre desfilava
a rainha com as princesas. Outras moças também iam junto. [...] a
gente enfeitava tudo com flores, papéis coloridos, fitas coloridas.
Enfeitava as ruas também [...] as casas sempre tinham o colorido da
festa e o cantarolar das músicas que a gente ia aprendendo ouvindo
no auto-falante. [...] A gente passava pelas ruas enfeitadas e o povo
tava lá. Nos passeios, nas janelas, para ver a gente passar nas
pranchas [...] muita gente ia caminhando também. O cordão era
sempre animado, sempre colorido [...] com a charanga da Carlos
Gomes.220
Participante dos cortejos de cordões e pranchas alegóricas das senhorinhas,
a entrevistada traz para a superfície da memória lembranças que preenchem a
micareta de uma tonalidade alegre e colorida.
Começava o ensaio e era como se já fosse o dia da festa. Ensaiava
muito, desde antes do carnaval até o dia que o cordão ia sair na
micareta. Tudo pra garantir o sucesso do desfile. Eram muitos grupos
e todo mundo queria ser admirado por onde passava. Queria que o
povo acompanhasse animado o desfile, queria ser o brilho da
festa.221
Os esforços e os cuidados são direcionados para a realização da micareta
que concentrava as atenções das elites locais. As apresentações eram elaboradas
com dedicação. Cada detalhe era imprescindível para alcançar os resultados
pretendidos: “garantir o sucesso”, “ser admirado”, “ser o brilho da festa”, e mostrar
como se comemora de maneira moderna a festa da micareta.
A micareta despertou uma paixão que resistiu ao tempo e ganha força, à
medida que a narrativa prossegue.
É como se eu pudesse ouvir agora o som da música, os versos: [faz
uma pausa e depois começa a cantarolar] A Colombina chegou, está
chamando Arlequim, vamos dançar meu amor, do começo ao fim. A
micareta chegou, com muita animação, trazendo muita alegria, pr’o
seu coração. [pausa] era um tempo bom, a gente se divertia, ria. Era
220 R. Muricy. Santos,82 anos, aposentada. Entrevista realizada em 10/04/2005. Santo Antônio de Jesus.
221 R. Muricy. Santos,82 anos, aposentada. Entrevista realizada em 10/04/2005. Santo Antônio de Jesus. 103
um gosto fazer um desfile bonito, cheio de luxo, de brilho. Todo
mundo gostava. [...] ficava mais contente quando o povo ia com a
gente, cantano a música. Era um coro de alegria. [...] Terminava um
desfile ficava na espera do próximo ano. Já ficava com saudade. As
vezes desfilava com todos os cordões uns dias depois [...] outras
cidades convidavam o grupo pra participar de alguma festa. A gente
adorava quando podia desfilar de novo [...] era pra isso que a gente
ensaiava: pra ser admirado por onde passava. Era o nosso
contentamento.222
A prova do sucesso dependia da resposta do público. Dentre os expectadores
da festa estavam outros foliões, moradores da cidade e do campo, visitantes de
outras cidades, em fim, representantes das elites e dos setores mais populares. A
adesão desse grupo tão diverso ao cortejo, significava o sucesso e a compensação
pelo esforço das organizadoras para levar às ruas, belos cordões e luxuosas
pranchas.
Na voz que entoa os versos carnavalescos, as cenas da micareta ganham a
vida e o brilho emanados do tempo em que os grandes desfiles tomavam as ruas da
cidade. Na memória dos que vivenciaram a micareta dos cordões, ecoam as notas
eloqüentes d’O Paladio, ressaltando o afinco com as senhorinhas organizam os
cordões.
Os preparativos para a Micareta são animadores. As Diretoras dos
cordões, em visita a redação d’O Paladio, anunciaram brilhantes e
graciosas apresentações que se organizam para enrubescer o
publico com saudável contentamento. Avante senhorinhas!223
As senhorinhas eram impulsionadas em direção às graciosas apresentações.
Aclamadas pelo público seus cordões eram sinônimo de luxo e elegância. Das idéias
que incidiam sobre o espaço da festa e a participação das senhorinhas, ainda é
possível encontrar as fibras, nas falas dos homens e mulheres que atuaram naquele
tempo.
Décadas depois do seu desaparecimento das ruas, a micareta dos cordões e
batucadas, encenada nas ruas da memória funciona ainda como válvula de escape.
Quando estava nas ruas da cidade era lugar de riso, de rir de si, do outro e da
própria vida. Nas “críticas espirituosas” os grupos foliões riam do trabalho, dos
costumes e da própria festa.
222 Angélica de Oliveira, 76 anos, professora. Entrevista realizada em 09/04/2005. Santo Antônio de Jesus.
223 Uma festa brilhante. O Paladio, Santo Antônio de Jesus, 25 de mar. 1945. 104
Os depoimentos parecem querer reafirmar sempre o clima pacífico em que as
festas acorriam, contrapondo a micareta dos cordões há um passado recente em
que a violência teria dominado as ruas.
Na memória, recoberta pela densa névoa do esquecimento, as fendas
permitem a passagem da luz que ilumina este ou aquele momento para ser
lembrado como verdade. As lembranças (re)elaboradas ao longo da vida são
representações das vivências festivas. Entretanto, elas emergem na voz dos
depoentes como verdade.
Desde a seleção de imagens a serem lembradas, os versos que permanecem
na memória, as cores revividas, até a narração, o que se constrói é uma
representação do passado vivido, formada sob a luz de toda a história do narrador –
e também do seu presente.
***
Uma voz captada no período de pesquisa encerrou a nostalgia da sua fala em
relação às festas populares na cidade de Santo Antônio de Jesus, na seguinte frase:
“Se o passado voltasse era bom”224. Esse trecho é representativo das feições idílicas
que o passado assume no ínterim do ato de rememorar e narrar os elementos
selecionados pela memória.
Este indivíduo atribui um valor maior ao passado. Mas o que há no presente
que leva tantas memórias a idealizarem o passado como algo significativamente
melhor? O fato é que repetidas vezes o querer manifesto nos depoimentos volta-se
para os anos idos, para festas banidas das ruas, para a “condenação” do agora:
[...] pelo jornal eu tenho lutado e escrito muito a respeito do
desaparecimento das festas. Porque são tradições e sendo uma
tradição é um apoio para a civilização de agora e o futuro. A gente se
baseia na tradição pra saber do passado[...] falta o apoio oficial. Só
se preocupam em trazer banda e coloca aí pra gritar até de
manhã.225
Pairam na atmosfera social do nosso tempo eflúvios saudosistas. Esse indício
é captado nas reminiscências de indivíduos que presenciaram transformações
224 Lourenço Santana Cruz. 91 anos. Aposentado. Entrevista realizada em 02/12/2006. Santo Antônio de Jesus.
225 Lamartine Augusto de Souza Vieira. 72 anos. Professor, jornalista e escritor. Entrevista realizada em 10/03/
2007. Nazaré. 105
profundas na sociedade. O discurso conduz a uma imagem de mudança e
desaparecimento de algumas práticas e em contraponto o surgimento de novas
formas de conceber o ato de festejar apontado como algo de menor valor que as
práticas festivas que sobrevivem apenas na memória.
Não só transformações externas impelem os indivíduos a voltarem os olhos
ao passado; a debilidade do corpo que acompanha o envelhecimento pode ser um
fator determinante. Assim o saudosismo não se dirige apenas à proximidade
comunitária que gerava a festa sob moldes diferenciados, mas ao que fisicamente
era possível realizar. Os historiadores com freqüência se deparam com “histórias de
passados pessoais que são meios de dar sentido à exclusão e à perda nas vidas
atuais de idosos.”226
Dessa maneira:
As comparações entre as ‘alegrias’ no passado e os momentos
presentes sincronizam-se [...] ao jogo da vida, sem descartar
possibilidades futuras expressas na e pela voz da memória. À
medida que os trabalhadores reelaboram suas memórias, mostramse capazes de enfrentar as tradições seletivas com a qualidade de
sujeitos ativos de sua própria história. São envolvimentos nos
mutantes modos de vida e de luta que, em vez de surpreenderem
simples contradições formais, revelam alternativas de interpretação
do como experimentaram condicionamentos vividos
historicamente.227
 O passado é reelaborado constantemente sob a perspectiva das experiências
e vivências presentes. Em meio às reminiscências manifesta-se a resistência e a
capitulação perante a desestruturação dos festejos. Embora as narrativas dos
entrevistados apresentem um ponto de convergência – a idealização do passado – é
preciso salientar um fator imprescindível ao trabalho com as fontes orais: como
acentua Alessandro Portelli:
[...] o ato e a arte de lembrar jamais deixam de ser profundamente
pessoais. [...] a memória é social [...] é um processo individual, que
ocorre em um meio social dinâmico, valendo-se de instrumentos
socialmente criados e compartilhados. Em vista disso, as
recordações podem ser semelhantes, contraditórias ou sobrepostas.
Porém em hipótese alguma, as lembranças de duas pessoas são
[...] exatamente iguais.228
226 THOMSON, Alistair; FRISCH, Michael; HAMILTON, Paula. Os debates sobre memória e história: alguns
aspectos internacionais. In: Usos e abusos da história oral. 4.ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. p. 85
227 SANTANA, 1998, p. 138.
228 PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética na História Oral.
In: Projeto História, (15), abril de 1997. p. 16. 106
 Assim, o ato de rememorar condicionado às vivências do indivíduo no tempo
pode apresentar pontos convergentes. Nas vozes que externaram as lembranças do
festejar em Santo Antônio de Jesus, a idealização do passado é um elemento
marcante.
Queria que voltasse porque é uma festa muito bonita[...] e também o
terno de reis, ele faz assim uma coisa de religião[...] essas festas
bonitas fazem muita falta. Festa que por mim não voltava é a
Micareta na praça. Muito braba, muito violenta.229
Além da nostalgia o trecho nos indica um outro fator que é apontado como
uma das causas do desaparecimento da Micareta nas ruas santantonienses: a
violência.
A memória não está restrita ao passado, inerte e imutável: é algo vivo e
mutante. O passado não sobrevive tal como ocorreu, ou seja, lembrar não é reviver,
é refazer, repensar a partir de imagens e idéias presentes, as experiências do
passado.
 A sociedade é um texto escrito de muitas maneiras, de muitos pontos e mãos;
texto manipulável e incorrigivelmente humano. E é preciso ter “[...] aptidão para ler,
em tudo – tanto na natureza quanto nos costumes do homem e até nas suas idéias
(nos seus conceitos abstratos) – os indícios da marcha do tempo.”230
229 Crispina de Araújo de Jesus, 52 anos. Feirante. Entrevista realizada em 20/03/2006. Santo Antônio de Jesus.
230 BAKHTIN, Mikhail M. O espaço e o Tempo. In: _________. Estética da Criação Verbal. 3. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2000. p. 243. 107
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
 Nos últimos meses de pesquisa, muitas vezes caminhei pelas ruas de Santo
Antônio de Jesus; pelas ruas que presenciaram o desfile de senhorinhas, de
batucadas e máscaras farroupilhas. Enquanto caminhava, ecoavam as vozes que,
durante o processo de entrevista, narraram os cortejos da micareta. As sonoridades
emanam também das páginas envelhecidas dos jornais, dando ritmo aos versos,
colorindo as fantasias, carros alegóricos e máscaras que emergem entre os
vestígios do passado.
 O exercício historiográfico é também um exercício de imaginação. Tateando
as ranhuras do tempo, encontramos a cidade – Santo Antônio de Jesus – e a
micareta. No período estudado, ambas são trabalhadas pela imaginação e
representadas sob a luz da modernidade. Sobre essas representações detemos o
nosso olhar a procura dos sentidos de festejar a micareta e alimentar as idéias de
modernização.
 Lidar com as fontes do acervo composto durante os meses de pesquisa torna
possível revelar nuances intrigantes das dinâmicas inerentes à realização da
micareta entre os anos de 1930 e 1950. Inscritas nas linhas e entrelinhas dos
documentos, estão expectativas e tensões que permearam as sociabilidades de um
espaço consagrado ao divertimento e ao riso que pode rir de tudo, até mesmo de si.
 Os jornais do período fazem referência a uma modernidade. Contudo, a
prática não se equipara ao discurso. Podemos falar então em uma modernização;
uma série de reformas urbanas que suscitam discursos inflamados em prol da
construção de um viver urbano ideal.
 As idéias de modernização, fervilhantes no período, projetam sobre a cidade
real, uma cidade ideal, imaginária. As projeções formuladas nessa atmosfera
ultrapassam as reais condições de Santo Antônio de Jesus – vão além de sua
estrutura física e de suas reais possibilidades de implementar reformas
modernizadoras.
 O afã modernizador incide também sobre a festa. Nos jornais a micareta é
descrita em seus cortejos luxuosos, em notas carregadas de adjetivos valorizando a
grandeza da festa nas ruas da cidade. Entretanto, analisar o contexto em que vivia
Santo Antônio de Jesus nesse período nos faz pensar que em alguns anos a festa
descrita não encontrou correspondência na festa realizada. 108
 Poderíamos então aventar a possibilidade de existir nesse momento histórico,
além de uma festa real, uma festa ideal, imaginária, construída para se adequar à
imagem de modernização que se queria imprimir na cidade.
 Por mais que não houvessem transformações profundas no espaço
santantoniense, as representações gestadas pelas elites demarcam condutas
preferenciais; instituem valores não restritos ao período estudado. As idéias de
modernização são cultivadas e reconfiguram as formas de ser, viver e ver a
sociedade. Preferencial, a partir de então, era aderir às novidades vindas da capital,
voltar os olhos para o novo e viver de acordo com os parâmetros da modernização.
De acordo com esse pressuposto, a micareta se transforma, assimilando
conteúdos e novidades ao longo do século XX. Abandona algumas práticas e
assimila outras, de acordo com o momento vivido pela cidade.
Observar a micareta no espaço compreendido entre 1930 e 1990 é focalizar
festas diferenciadas, que, para além das permanências, vivenciam mudanças
profundas nas formas de festejar. Mesmo que a modernidade efetivamente não
estivesse presente na cidade, era necessário parecer moderno, pensar e viver como
um cidadão inserido na modernidade. Esse sentimento pode ser constatado ainda
hoje.
Nas décadas de 30 e 40 do século passado, para ser, viver e ver como
cidadão da modernidade era imprescindível comemorar a micareta. Mas, como foi
mostrado nas páginas deste trabalho, a micareta era composta de diversas festas e
nem todas as formas de brincar nesse espaço de folia eram consideradas sinônimos
de modernidade.
O discurso das elites focaliza o espaço festivo com colorações de acirrada
disputa entre os cordões das senhorinhas, bem organizados e bem vestidos, de
acordo com o postulado da modernidade, e os farroupilhas e desasseiados que,
segundo o olhar elitista, destoavam dos ares modernistas predominantes nas ruas
santantonienses.
Apesar disso, não encontramos indícios de violência entre os grupos
envolvidos na festa, nem mesmo nas tentativas de inibir a participações dos
farroupilhas. As tentativas de controle eram engendradas pelo discurso e nesse
permaneciam as notas mais violentas da separação entre o que era preferencial e
não preferencial no cerne da modernização santantoniense. 109
Nos movimentados dias de comemoração da micareta se desenvolviam nas
ruas as trocas e não embates acirrados pelo domínio do espaço festivo. As
senhorinhas reinvidicavam o seu lugar de símbolo da modernização, exibindo seus
cordões farfalhantes ornados com as novidades da capital. As informações, as
formas de brincar circulavam entre os grupos.
As senhorinhas eram influenciadas pelos outros grupos e seus desfiles
também dependiam dos componentes das filarmônicas da cidade, compostas,
sobretudo pelos setores menos abastados. Os farroupilhas também organizavam as
suas exibições observando o espaço festivo.
Os populares, sem recursos para buscar os apetrechos e indumentárias de
inspiração soteropolitana, tinham como referência os cordões das senhorinhas e
uma criatividade que manejavam os assuntos do trabalho, do cotidiano e do amor.
Com fantasias e instrumentos improvisados, ou não, ocupavam o espaço da cidade,
reclamando o seu lugar de festejar. Aderindo às formas usadas pelas elites ou
festejando Momo à sua maneira, os grupos populares representavam uma parte
importante das festividades da micareta.
 Os elementos dispostos no campo da festa desencadeiam a reelaboração das
formas de festejar a partir da apropriação de modelos usados pelos grupos. Os
expectadores, participantes, elites e populares ocupam o espaço da micareta,
fazendo dele um lugar de riso, de brincar com personagens, fantasias e máscaras:
um lugar de trocas culturais.
 Entre as diversas festividades que compunham a micareta, foram construídos
significados diversos para as práticas que recobriam as ruas santantonienses. Os
sentidos da folia estão intimamente relacionados aos grupos envolvidos com a festa.
Para as elites, além do sentido de diversão inerente à carnavalização, estar na festa,
organizá-la, significava aderir ao movimento da modernização e uma oportunidade
de mostrar uma das formas de modernização, constituído dos desfiles dos grupos de
senhorinhas bem organizados, bem trajados e bem ensaiados.
 Para os populares, presentes de forma marcante na micareta e também no
carnaval, prevalece o sentido da diversão. A micareta, para esses participantes, era
o lugar do riso.
O cotidiano estava na festa em forma de versos e músicas: o trabalho, as
dificuldades, os amores, as desilusões e a própria festa assumiam nesse espaço o 110
tom multicor, conferido pelo riso carnavalesco. Através do riso, as tensões cotidianas
eram amainadas.
 Entre os versos que brincavam com o cotidiano e as fantasias improvisadas
os grupos populares afirmavam a sua presença na vida social citadina e no espaço
de sociabilidade da micareta santantoniense. De forma consciente ou não, frente à
campanha das elites pela retirada dos farroupilhas das ruas, os populares requeriam
o seu direito de participar das aclamadas festividades da micareta; de brincar, rir e
provocar o riso.
 Os sentidos diferenciados são construídos na festa. A micareta, para além da
diversão e das idéias de modernização, era lugar de sociabilidade, no qual a
população da cidade – e da região – se encontrava e comunicava experiências,
impressões e leituras. No movimento da festa, há uma circularidade que enriquece a
micareta de Santo Antônio de Jesus e a vida dos brincantes.
 Lugar de encontro, troca e expressão, a micareta representava uma data
importante para a vida social santantoniense. Para as elites, era um meio de
expressar seus anseios. Os populares utilizavam fantasias, máscaras e músicas
para rir de tudo, da vida e da própria festa.
 Os cordões, os bailes farfalhantes, as batucadas e as pranchas alegóricas
dominavam a cidade, preenchendo as ruas com os desfiles coloridos. As
sonoridades carnavalescas ecoavam pela cidade. Entre as cores e os versos, a
micareta tomava forma no espaço citadino e nos domínios da memória.
 As festividades comportavam a alegria que contagiava os foliões; atraia o
público e os participantes de outras cidades; motivava viagens à Salvador em busca
de novidades. Santo Antônio de Jesus vivenciava a micareta intensamente entre o
contentamento de brincar, batucar e requebrar pelas ruas e a expectativa da festa
do ano vindouro.
 O movimento das ruas se deslocava para a memória, retornando apenas no
ano seguinte. Nesse processo a festa é sempre reelaborada e marcada com a
influência da novidade. A organização da micareta é motivada pelos ares da
modernidade e da diversão.
 Os modelos preferenciais mudam e quando o trio elétrico assume o posto de
novidade na festa, os cordões, pranchas alegóricas, batucadas e Zé-pereiras estão
em processo de migração para o espaço da memória. 111
 As lembranças afloram no desenrolar das narrativas, trazendo a tona essas
festas que há muito tempo não estão presentes nas ruas da cidade. Marcada pelo
saudosismo, a micareta é cantada no ritmo das charangas.
 Da memória e das páginas dos jornais a micareta veio desfilar nessas
páginas que expressaram seu movimento, analisando os sentidos de compor suas
festas nas décadas de 1930 e 1940. Caminhamos pelas ruas da cidade e da
memória em busca dos vestígios para compor o trabalho que finda nessas linhas.
 Para um texto de história, com seus laços fincados em determinado tempo e
espaço social, o ponto final não implica em um fim. É sempre um até breve. Até que
outras questões sejam formuladas, até que os indícios de um outro tempo,
recobertos pela poeira dos anos, sejam notados pelo olhar daquele que se dedica a
desfiar e (re)tecer as malhas da história. 112
FONTES
1. Fontes orais:
A. P. Moraes, comerciante. 76 anos. Entrevista realizada em 02/03/2009.
A. S. Almeida, 87 anos. Feirante. Entrevista realizada em 27/01/ 2008.
Almerindo Queiroz, 86 anos. Pedreiro. Entrevista realizada em 05/05/2007. Santo
Antônio de Jesus.
Angélica de Oliveira, 76 anos, professora. Entrevista realizada em 09/04/2005. Santo
Antônio de Jesus.
Augusto Soares da Silva, 87 anos. Feirante. Entrevista realizada em 13/12/2005.
Santo Antônio de Jesus.
Crispina de Araújo de Jesus, 52 anos. Feirante. Entrevista realizada em 20/03/2006.
Santo Antônio de Jesus.
Cristina Ferreira,84 anos, feirante. Entrevista realizada em 26/10/2007.
E. F. Soares, 82 anos. Aposentado. Entrevista realizada em 25/ 03/ 2008.
João Sousa, 83 anos. Feirante. Entrevista realizada em 19/04/2007.
José Almerindo dos Santos, 78 anos. Aposentado. Entrevista realizada em 06/
04/2005.
Lamartine Augusto de Souza Vieira. 72 anos. Professor, jornalista e escritor.
Entrevista realizada em 10/03/ 2007. Nazaré.
Lourenço Santana, integrante da filarmônica Carlos Gomes. Pedreiro. Entrevista
realizada em 02/08/2007. Santo Antônio de Jesus.
Manoel dos Santos, 79 anos. Feirante. Entrevista realizada em 23/ 05/ 2006. Santo
Antônio de Jesus.
N. Gomes, 83 anos. Aposentada. Entrevista realizada em 07/10/2007.Santo Antônio
de Jesus.
Neide Santos, 87 anos. Professora. Entrevista realizada em 03/04/2008.
R. F. Santos,85 anos. Professora. Entrevista realizada em 23/03/2008. Santo
Antônio de Jesus.
R. M. Santos,82 anos. Aposentada. Entrevista realizada em 10/04/2005. Santo
Antônio de Jesus. 113
Rafael Galvão Santos, 80 anos. Lavrador. Entrevista realizada em 26/07/2008.
Santo Antônio de Jesus.
Rita Sousa, 78 anos. Aposentada. Entrevista realizada em 14/01/2008. Santo
Antônio de Jesus.
2. Fontes impressas:
SALES, Geraldo Pessoa. Santo Antônio de Jesus -1965 - A cidade que encontrei.
Santo Antônio de Jesus.
BANCO DO NORDESTE DO BRASIL S.A.. Santo Antônio de Jesus. Ministério do
interior. Super DEPAD: Divisão de Mecanografia. Março de 1981. (Trata-se de uma
monografia elaborado por representantes do Banco do Nordeste sobre a região de
Santo Antônio de Jesus. É possível encontrar uma cópia do referido material, bem
como outros estudos da cidade, na pasta Santo Antônio de Jesus em poder da
biblioteca municipal da cidade.)
3. Periódicos
Jornal O Paladio
Jornal O Detetive 114
REFERÊNCIAS
ABREU, Martha. Festas e cultura popular na formação do “povo brasileiro”. In:
Projeto História, São Paulo, n. 16, fevereiro de 1998.
ALBUQUERQUE, Wlamira Ribeiro de. Algazarra nas ruas: comemorações da
Independência na Bahia (1889-1923). Campinas, SP: editora da UNICAMP/ Centro
de Pesquisa em História Social, 1999.
BAKHTIN, Mikhail M. Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O
contexto de François Rabelais. São Paulo:HUCITEC; Brasília: Editora da
Universidade de Brasília, 1993.
___________. O espaço e o Tempo. In: _________. Estética da Criação Verbal. 3.
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BARROS, José D’Ássunção. Cidade e História. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes,
2007.
BENJAMIN, Walter. O Narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Lescov. In:
_________. Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história
cultural. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
__________. Cultura Popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.
CARLOS, Ana Fani A. o lugar e as práticas cotidianas. In: GONÇALVES, Neyde
Maria S.; SILVA, Maria Auxiliadora da.; LAGE, Creuza Santos (orgs). Os lugares do
mundo: a globalização dos lugares. Salvador: UFBa, 2000.
CASTORIADIS, Cornelius. O imaginário: a criação no domínio social-histórico. In:
_________. Encruzilhadas do Labirinto II: Domínios do Homem. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1987.
CERTEAU, Michel De. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1982. 115
CHARTIER, Roger. Textos, impressões, leituras. In: HUNT, Lynn. A nova história
cultural. 2. ed. São Paulo: Companhia das letras, 2001.
CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia: uma História Social do Carnaval
carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Cia das Letras, 2001.
FRY, Peter; CARRARA, Sérgio; MARTINS-COSTA, Ana Luiza. Negros e brancos co
Carnaval da Velha República. In: REIS, João José. Escravidão e Invenção da
Liberdade: estudo sobre o negro no Brasil. Brasiliense, 1988.
HALL, Stuart. Notas sobre a desconstrução do “popular”. In: ________. Identidades
e Mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG: Brasília: Representação da
Unesco no Brasil, 2003.
HUNT, Lynn. Apresentação: história, cultura e texto. In:________. A nova história
cultural. 2. ed. São Paulo: Companhia das letras, 2001.
MALUF, Marina. Ruídos da memória. São Paulo: Siciliano, 1995.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Muito além do espaço: por uma história cultural do
urbano. Estudos Históricos, Riode Janeiro, vol. 8, nº 16,1995, pp. 279-290.
Disponível em: www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/178.pdf. Acesso em: 16/10/2008.
____________. Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias. Revista
Brasileira de História, vol. 27, nº 53, junho de 2007.
PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre
a ética na História Oral. In: Projeto História, (15), abril de 1997.
SEBE, José Carlos. Carnaval, carnavais. São Paulo:Ática, 1986.
SAMUEL, Raphael. Documentação: História Local e História Oral. In: Revista
Brasileira de História. São Paulo, Volume 9, nº 19. Set. 89/fev. 90.
SANTANA, Charles d’Almeida. Dimensão Histórico Cultural “ Cidades do
recôncavo”. Programa de Desenvolvimento regional Sustentável. Recôncavo Sul.
CAR. Salvador Abril de 1999. 116
____________. Fartura e Ventura camponesas: trabalho, cotidiano e migrações:
Bahia 1950 -1980.São Paulo: Annablume, 1998.
SANTOS, Jocélio Teles. Divertimentos Estrondosos: batuques e sambas no século
XIX. In:SANSONE, Livio; SANTOS, Jocélio Teles (orgs). Ritmos em Trânsito:
sócio-antropologia da música baiana. São Paulo: Dynamis Editorial: Salvador, BA:
Programa A Cor da Bahia e Projeto S.A.M.BA., 1997.
SANTOS, Vanicléia Silva. Os ritos e os ritmos da micareta no Sertão da Bahia. In:
Projeto História: Festas, ritos e celebrações. Revista do Programa de Estudos Pósgraduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo: Educ,
nº 28, Janeiro – Junho 2004.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural
na Primeira República. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
____________. A ficção capciosa e a história traída. In: GLEDSON, John. Machado
de Assis: ficção e história. Traduzido por Sônia Coutinho. 2. ed. rev. São Paulo: Paz
e Terra, 2003.
SOIHET, Rachel. Reflexões sobre o carnaval na historiografia: algumas abordagens.
Tempo 7. Rio de Janeiro, v. 7, p. 169-188, 1999.
THOMSON, Alistair; FRISCH, Michael; HAMILTON, Paula. Os debates sobre
memória e história: alguns aspectos internacionais. In: Usos e abusos da história
oral. 4.ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.
VALADÃO, Hélio. Santo Antônio de Jesus, sua gente e suas origens. Santo
Antônio de Jesus, 2005.
VIANNA, Hildegardes. Do Entrudo ao Carnaval na Bahia. In: Revista Brasileira de
Folclore. Ano V, n. 13, set/dez 1965.
VIEIRA FILHO, Raphael Rodrigues. Diversidade no carnaval de Salvador – as
manifestações afro-brasileiras (1876-1930). In: Projeto História, São Paulo, (14),
fevereiro de 1997.
___________. Folguedos negros no carnaval de Salvador (1880-1930). In:
SANSONE, Livio; SANTOS, Jocélio Teles (orgs.). Ritmos em Trânsito: sócio-117
antropologia da música baiana. São Paulo: Dynamis Editorial: Salvador, BA:
Programa A Cor da Bahia e Projeto S.A.M.BA., 1997
___________. A africanização do Carnaval de Salvador, BA: a re-criação do
espaço carnavalesco (1876-1930). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.